Luís Salgueiro (1993) é compositor, mas também membro da direcção do movimento patrimonial pela música portuguesa (mpmp), no âmbito do qual coordena ainda as edições. Depois de concluir a licenciatura também em composição na Escola Superior de Música de Lisboa, onde trabalhou sob a orientação de António Pinho Vargas, Carlos Marecos e Luís Tinoco, Luís Salgueiro completou o mestrado em composição pela Hochschule für Musik, Theater und Medien Hannover, tendo estudado com Ming Tsao, Gordon Williamson e Joachim Heintz, beneficiando de uma bolsa DAAD. A 9 de Fevereiro de 2025, o ars ad hoc estreará, em Serralves, o seu septeto mir nichts, dir nichts, uma das cinco peças que, até à data, escreveu por encomenda da Arte no Tempo.
[AnT] Falas sobre a influência da filosofia de Benjamin e Adorno na tua obra. De que maneira estas correntes filosóficas se reflectem nas escolhas estéticas e estruturais da peça? Existe algum conceito ou texto específico que tenha sido particularmente inspirador na criação desta obra?
[LS] Não se reflectem de todo. E, ao mesmo tempo, estão em todas as escolhas. (Dialética!)
Piada à parte: falo desses autores nas notas que escrevi para acompanhar a peça porque são dois autores que me deram ferramentas conceptuais importantes; como em todas as leituras — idealmente —, ou me ensinaram a articular algo que privadamente sentia, ou me abriram novas maneiras de ver e sentir o mundo. Por isso, fazem parte da minha sensibilidade, e consequentemente de todas as minhas escolhas — quer eu queira, quer não, quer os tente convocar de forma mais ou menos explícita.
Por outro lado, o que digo nas notas é que parto deles precisamente porque as suas respostas, grosso modo, já não servem, e o desafio é hoje o de seguir os mesmos tipos de impulsos até novas respostas — e assim, também, começar a conseguir articular as perguntas que fazem hoje falta.
Nas notas de programa, toco de forma mais explícita não tanto em conceitos ou em leituras específicas, mas em imagens recorrentes em ambos: na que Adorno chamou de “dialética da solidão” (reflexões sobre a recepção de música em condições sociais que empobrecem a escuta), e (claro) em toda a constelação de imagens benjaminianas em torno do Angelus Novus e da catástrofe da História. Mas a peça não tem, de todo, que ser lida à luz destes ou doutros conceitos, e ainda menos pressupõe que se esteja tu-cá-tu-lá com a bibliografia dos dois autores (no alemão original, quiçá mesmo nos seus manuscritos ainda por dactilografar), pelo que achei mais útil colocá-los logo em jogo com os elementos da peça (mesmo que ao de leve) do que simplesmente nomeá-los abreviadamente e deixar esse trabalho para o leitor. Pior: são autores que, no limite, trabalharam apenas um par de impulsos, mas de forma muito profunda e com muitas declinações. Grande parte dos seus esforços foi coleccionar e apresentar o contexto que tornava visíveis as suas ideias. Não cuidar desse contexto — elidi-lo, fazendo apenas um envio para o conceito x ou a obra y — degradaria activamente a sua compreensão. Aliás, como diz Peter Osborne num dos ensaios coligidos no seu The Postconceptual Condition — que é a verdadeira inspiração para esta peça, e a verdadeira resposta a esta pergunta —, certas citações descontextualizadas de Benjamin correm o risco de se tornarem ícones da posição do intelectual trágico, do esquerdista derrotado, do crítico estéril, e de lhe retirarem todo o seu incrível poder latente.
Por outro lado, nunca acreditei numa separação entre corpo e mente, ou fazer e pensar. Tudo o que fazemos tem a sua componente cognitiva, que recruta um entendimento pré-linguístico (e pós-linguístico também, invento eu aqui e agora). A arte é uma forma de pensamento, mas deve ser uma forma de pensamento forçosamente expressa nos termos dos seus materiais; isto é: uma peça de música não deve ilustrar um conceito filosófico ou linguístico, mas deve sim resolver um problema cognitivo que só pode ser formulado através do fazer som. O forte da música, a meu ver, é que recruta de tal forma tantas das faculdades cognitivas de um corpo — musculares, sintáticas e linguísticas, sensação de tempo, de sujeito, de relações sujeito-objecto —, de uma maneira difícil de recriar com outros estímulos, e assim engendra todo um excesso que exige igualmente uma recepção multimodal muito para lá da necessária à interpretação do estímulo material, e é assim que o pensamento linguístico é cooptado. Isto acontece, claro está, com toda a prática artística, mas, para mim, a música reúne mais facilmente e de forma mais natural as condições para tal, essencialmente através do controlo temporal que exerce sobre o corpo.

A peça parece explorar uma tensão entre a imobilidade e o movimento. Como equilibras estas duas forças ao compor, no contexto de uma obra que está profundamente enraizada na ideia de estase?
Não sei se as equilibro, por acaso. Como diz o Borges num dos seus prefácios: tentei; “não sei até onde me acompanhou a sorte”. Não sei se fui assim tão bem sucedido no meu enunciado inicial… o que quer dizer (geralmente) que houve algum aspecto musical no material que exigiu atenção, que se impôs, que escapou ao meu controlo — e isso é, na verdade, muito preferível. Ou então: elas que se equilibrem a elas próprias, que já são crescidinhas.
Na verdade, sobram relativamente poucas das passagens mais estáticas na peça final. Foram tortuosas de escrever, e muitas foram apagadas e deixadas pelo caminho. Já é naturalmente difícil escrever algo que seja aparentemente estático num sentido óbvio, dada a elegância que é exigida aos materiais e às suas relações para a passagem ser convincente. Quanto às que sobraram, sinto — e ainda bem, acredito — que estão infectadas de movimento interno; no mínimo, de tensão. Devo ter passado tanto tempo a medir a forma como a duração daqueles acordes sustentados interagiam com os materiais que os rodeavam como a executar algumas das passagens mais densas — que, por sua vez, por muito histéricas que sejam, estão sempre circunscritas a um centro. Articulam um falso movimento, que é estruturalmente sempre frustrado de alguma maneira. Que é como dizer: são tão estáticas como as outras.
Acho que as únicas passagens realmente estáticas da peça são aquelas onde permito um relaxamento da tensão discursiva para depois jogar com a surpresa — de onde também vem o título, “mir nichts, dir nichts”, que é uma expressão alemã que significa de repente, subitamente, como o nosso “da noite para o dia”. Todas as outras, independentemente do que se passa a nível da textura, vivem de alguma sobreposição de elementos heterogéneos, que exigem resolução e, por isso, movimento.

O que motivou a tua decisão de inserir métricas não tão convencionais, como 4/20, 2/10, 2/12, em vez de simplesmente alterar a pulsação do tempo?
Diria que é a solução que melhor ata todas as considerações em torno desse recurso. Acho um bom compromisso entre a minha intenção com esse gesto, entre a genealogia que pode ser traçada com todos os outros compositores que fizeram coisas parecidas, e (claro) entre o vosso conforto a ler o papel na estante.
Há quem diga que é precisamente isso que fazem estes compassos: alterar o tempo, ou uma modulação métrica por outro nome. Respondendo directamente à pergunta: não altero o tempo porque não acho que seja de “tempo” que se trata. Ou melhor: temos que ser cuidadosos com termos como “tempo” ou “pulsação”, porque tendem a remeter demasiado para uma quantificação do tempo, que é talvez a pior maneira de falar e pensar acerca disso que temos. Isso nota-se até pelos recursos de escrita que tenho disponíveis enquanto compositor. Como é que um compositor geralmente muda a pulsação? Ou usa uma indicação agógica (um termo italiano genérico, que remete para um contexto simbólico já pouco operante, ou — pior ainda — um termo metafórico), ou simplesmente escreve um número novo (semínima igual a cinquenta quilómetros-hora dentro de povoações). Nada disto são recursos musicais propriamente ditos, porque nenhum deles é propriamente mobilizável no acto de fazer música. Ao cabo e ao resto, é indubitavelmente mais fácil falhar um salto absoluto de tempo (especialmente em ensemble) do que um ritmo complicado; a diferença é que o primeiro não tem consequências — e, se não tem consequências, para que serve? —, enquanto que o outro está idealmente imbricado no funcionamento da textura musical.
Indo rapidamente à questão da geneologia: a primeira proposta deste género de compassos “irracionais” foi de Henry Cowell, no seu New Musical Resources — um tratado já quase centenário. É a ele que devemos o esteio conceptual para continuar a pensar a semibreve como a unidade-base a ser dividida de maneiras diferentes. Terá chegado a essa ideia inspirado na série dos harmónicos, e assim propôs vários exemplos de polirritmia com as várias divisões — as potências de dois e as quiálteras de três, cinco, sete — a soarem ao mesmo tempo. Porém, também propôs uma notação que possibilitava que todas estas durações fossem utilizadas horizontalmente, aditivamente, e que estivessem disponíveis em qualquer momento do fluxo temporal. Isso permitiria ritmos muito mais filigranados: ele dá, como exemplo, um compasso em que as notas duma tercina são separadas e distribuídas ao longo dum compasso, com outros valores simples pelo meio: um tempo, um terço de tempo, um tempo, um terço de tempo…!
Também o próprio Cowell acabou por comparar estas descontinuidades como mudanças de tempo (nem que seja implicitamente, quando nota que, até aí, sempre se tinha assumido que mudanças de tempo tinham que ocorrer apenas entre compassos), mas acredito que em parte como begala para se fazer entender — usando “tempo” de forma pouco precisa — e em parte porque, como o próprio admite, ele não pensava circunscrever estes ritmos à música instrumental. E, de facto, a minha intuição inicial levou-me a empregar essencialmente modulações métricas, isto é: mudanças de tempo em que uma duração é reinterpretada como outra — uma tercina de colcheia passa a valer uma colcheia fora da tercina, por exemplo, e portanto a pulsação acelera 50%. Sempre dei muita atenção, de forma intuitiva, à manipulação do tempo, desde que comecei a escrever, e muitas das minhas primeiras experiências quanto à notação musical foram no sentido de tornar espessas e perceptíveis essas manipulações. Fiz muito uso destas modulações métricas para reinterpretar e recontextualizar material, mas essa operação articulava essencialmente planos formais. Fui revendo o que fazia nesses momentos especiais, para que pudessem alastrar-se ao longo duma peça. Fui também, é claro, estudando a música doutros compositores. Num e noutro caso, começou a interessar-me mais alongar-me nessa justaposição entre duas pulsações — justaposição, não sobreposição —, daí que a operação tenha ficado mais e mais localizada e concentrada no espaço. Mais importante ainda foi ver, à medida que ia amadurecendo, quais eram os seus efeitos somáticos na minha compreensão da pulsação, com consequências quer ao nível do material, do ponto de vista abstracto, quer (crucialmente) do ponto de vista estético, da recepção, do estímulo, do fazer música, da coordenação — enfim: do corpo.
Dos compositores que partilham esses objectivos, há dois dos quais me aproximo: Adès e Ferneyhough (mais os seus melhores “filhos”). Ferneyhough está (comme d’habitude) certíssimo, quando diz que se tratam de relações e proporções — termos tão saturados de sedimentação filosófica quanto de significado (chamemos-lhe) “puramente” musical. Adès não teoriza, mas sobe rotineiramente ao pódio, onde tem que guiar uma orquestra inteira de gente neste tipo de obstáculos (não que Ferneyhough não seja capaz de executar os ritmos que escreve, ao contrário do que dizem as piadinhas!), e por isso roubo-lhe a notação das “quiálteras incompletas”; embora seja uma notação redundante, é útil em ensaio.
A obra dá muita ênfase ao quarteto de cordas. Que papel idealizaste para os dois instrumentos de sopro e o piano?
Não foi necessariamente pensado assim a priori, mas acho que pode ser dito que o quarteto de cordas é mais ou menos metonímico da pulsão frenética e os sopros da pulsão de estase. O piano fica ali a meio, até como indicia o arco formal da peça: não que eu esteja muito preocupado com sínteses, mas a coisa como que acaba com uma espécie de solo de piano.
Quando a ideia da peça impõe à escrita uma abordagem particularmente centrada na materialidade da execução instrumental, as cordas friccionadas tendem a ser mais plásticas. Qualquer alteração nos parâmetros de abordagem a um instrumento de cordas elicitam uma resposta. As gradações não são infinitas, mas há imenso a fazer com o ponto de contacto e com a pressão desse contacto. Os sopros, por sua vez, são um milagre muito mais particular. Como sistema físico, têm uma riqueza inigualável, mas impõe as suas condições e exige que seja abordado nos seus termos — como, de resto, idealmente qualquer material musical. Vai daí, resulta esta divisão funcional, pelo menos para os propósitos desta peça.
Devo também fazer notar que dou imensa atenção à orquestração — que tem, como uma das suas funções essenciais, no contexto de certa música contemporânea, o controlo da ressonância (real ou ficcionada). Tão importante como o sujeito duma fotografia é a forma como é retratado — o que, em termos fotográficos, diz respeito ao que a luz realça e como o realça.

Tendo estudado em Portugal e na Alemanha, sentes que há uma fusão entre a tradição musical europeia e as novas linguagens que desenvolves nas tuas obras?
Claro! Há alternativa, sequer? Alimentamo-nos do que nos rodeia. E, em bom rigor, creio que as “novas linguagens” são a tradição musical europeia. Nem os pobres dos compositores mais obstinadamente reaccionários conseguem fazer finca-pé no mesmo sítio: se não se movem eles, move-se-lhes o chão por baixo.
Se há coisa boa desta tradição ser milenar é que nada nem ninguém é capaz de a reclamar inteiramente para si. Como disse Eliot, a tradição não se herda — ganha-se, a muito custo. Não pertence inteira nem ao passado nem ao presente. Não são precisas hagiografias, teleologias ou mitemas românticos para sustentar que o que sobra, nestes mil anos de música escrita e profissionalizada — onde mudaram, várias vezes, as noções de arte e as funções do artista —, são cuidadores, que meticulosa e apaixonadamente mantiveram o que acham ignorado pelos seus pares, ou artífices, que sentiram necessário que se fizesse mais, muito mais (ou menos, muito menos) disto ou daquilo. Da minha parte, é esse o que entendo ser o meu papel. Nada concreto — e, por isso, orgânico, historicamente contigente — é capaz de sobreviver mil anos. Sobra apenas este movimento abstracto.
A tradição não oferece moldes, mas sim resistências contra as quais aferir as nossas pulsões expressivas. Isso, e linguagem para partilhar. É tão e só isso. Não vou fingir que não percebi o significado pragmático da expressão, mas não sei se sei bem ao certo o que serão essas “novas linguagens”. Ninguém escreve para o futuro. Escrever para o desconhecido, talvez, mas para o futuro? Não creio. Os transgressivos estão sempre tão embrenhados na tradição quanto os outros — quase sempre mais, nem que seja pela vontade de sair.
Por outro lado: algo que duvido que esteja latente na dimensão pragmática da pergunta, mas que não posso deixar de sublinhar, é que a tradição é também — talvez seja mesmo essencialmente — uma tecnologia discursiva e conceptual do exercício de poder. Em quase toda a parerga tenho enfatizado a dimensão social e política dos processos em torno do fazer arte, e este momento, crucialmente, não pode ser excepção. Quando falamos de cánones e de tradição falamos também dos seus processos de formação e das forças que os sustentam, e essas forças tendem a ser violentas, não raras vezes inclusivamente com a arte e os artistas que dizem consagrar. Nesse sentido, chamo até mim — ganho, a muito custo — a tradição, para nela ocupar o meu espaço. Por mim, e pelos meus.
Num e noutro caso, regresso a mais uma imagem de Benjamin: o que nos leva à revolta não são as visões dos nossos descendentes em liberdade, mas as memórias dos nossos antepassados em escravidão.
Como esperas que o público reaja a esta peça? Há alguma reacção emocional ou intelectual que gostarias de provocar na audiência?
A resposta a essa pergunta é sempre simultaneamente privada e absolutamente pública, porque a resposta é a peça. Parece aquele cliché — que destesto! — que diz que a música fala por ela, bem sei… mas o resto está mais ou menos fora das minhas mãos. Já fiz tanto quanto consegui para tornar a peça legível a quem a visita. A única coisa que posso pedir é um ouvinte atento e curioso.

Quais são os teus próximos projectos? Como se encaixa esta peça no teu percurso criativo? Que outras direcções gostarias de explorar no futuro?
Factóide curioso: eu pensei inicialmente em responder a esta encomenda da Arte no Tempo com uma polywerk: uma obra que resulta da combinação de várias obras mais pequenas, para subconjuntos da instrumentação total, e que funcionem quer individualmente, quer quando tocadas juntas e ao mesmo tempo. O material das cordas partiria da minha obra elucubraciones (i) — é por isso que lá está um “(i)” no título dessa obra —, ao qual juntaria uma outra para flauta solo e outra para trio de clarinete (ie. piano, violino e clarinete). Depois lá pensei melhor, e cheguei à conclusão (incrivelmente óbvia) de que seria ambicioso demais desenvolver todo o complexo espaço convexo das interacções necessárias para se montar como polywerk e obra (semi-)aberta. E, em todo o caso, perdi-me (no melhor dos sentidos) nos materiais desta peça. Aliás: acho que pela primeira vez sinto a necessidade de rever uma peça, por querer perseguir algumas ideias que ficaram de fora.
Isto para dizer: a minha investigação tem lidado com a obra musical aberta, mais especificamente com o papel de processos interpessoais na prática musical em ensemble e na abertura consequente de parâmetros musicais. A peça elucubraciones (i), para trio de cordas, é uma das instâncias mais elegantes e profundas dessa pesquisa — mas também a mais hermética. O meu objectivo agora passaria por trabalhar alguns desses novos recursos até desenvolver um repertório que contivesse formas idiomáticas para todos os tipos de instrumentos, e alargar esses pressupostos a ensembles maiores. A minha wrapping — encomenda da Arte no Tempo para o projecto Nova Música para Novos Músicos! — faz parte desse percurso. Mas, fora isso, temo que tenha passado os últimos tempos a responder a encomendas que não se coadunam com este projecto. Faço-o com gosto — ao cabo e ao resto, trata-se de músicos e instituições com interesse no meu trabalho, e com quem eu, por minha vez, quero trabalhar —, mas gostaria que os meus próximos projectos passassem pela continuação dessa pesquisa. Gostava também de investir mais na documentação, divulgação e sobrevida no geral das minhas peças dos últimos anos, que sinto que descurei, ora por excesso de trabalho, ora por um ano particularmente desafiante a vários níveis.
Obrigada pelas tuas respostas.