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Nuno Aroso: poeta sonoro

Nuno Aroso (Porto, 1978) é um poeta dos sons, um artista que escolheu fazer da música o seu meio de expressão, mas que frequentemente estabelece diálogo com outras áreas que convoca para o seu trabalho.
A sua presença nas produções da Arte no Tempo tem assumido cada vez maior relevância, desde a apresentação de projectos que integra (Ruído Vermelho, Magnet duo, Clamat – colectivo variável), à apresentação a solo, à frente do Grupo de Percussão da Universidade do Minho, nas suas participações no Festival Itinerante de Percussão ou, ainda, na direcção de duas edições do estágio Nova Música para Novos Músicos, para o qual teve oportunidade de compor uma obra.

A propósito da estreia do espectáculo A Fog Machine e outros poemas para o teu regresso, a Arte no Tempo desafia o artista a falar sobre este e outros projectos que brevemente trará a público.

foto © Bruno Nacarato 


[AnT] A ideia da Fog Machine surge num momento que se sentia de viragem ou transformação, ainda antes de se saber que enfrentaríamos, a nível global, a pandemia de COVID-19. Qual é a ideia por detrás deste espectáculo? 
[NA] Este espetáculo talvez seja, de todos os que fui tendo a sorte de poder pensar e realizar nos últimos anos, aquele que terá um lado mais pessoal, com ponto de partida algo autobiográfico, íntimo. Explico melhor, começando pelo que vem antes da ideia do espectáculo, uma vez que essa será já uma elaboração ou pré-concretização desmaterializada. O que surge primeiro é um qualquer embate, uma inquietação, uma experiência. No caso, a dada altura, comecei a questionar-me com intensidade sobre o tempo, o seu passar. E isso vem com uma carga que, por simpatia, me deixou uma interrogação sobre o propósito dos meus esforços artísticos. Lembrava-me de Jorge de Sena, nos 40 anos de Servidão: «Chega-se a um momento da vida (e por coincidência a um momento do mundo que seja por linguagem o nosso) em que o poeta se interroga antes de escrever: porquê, e para quê, e para quem?» Estas perguntas, no caminho para o estúdio, que fazia a pé, adentro da neblina que inunda muitas vezes a beira-mar, no Porto, de manhã cedo, permitiram um momento de alguma dúvida e, não escondo, de alguma errância artística.  Procurando o centro que me parecia escapar e as respostas ao Jorge de Sena e a mim próprio, lembrava-me das máquinas de fumos por comparação com o nevoeiro da manhã. Máquinas que, em palcos distantes no tempo, eram para mim objecto de fascínio, de uma inocência sequiosa por fazer música. A fog machine, dito assim mesmo, propositadamente em inglês, é uma metáfora do outrora em que as névoas fabricavam sonhos sem fim, e do tempo de hoje em que o músico, em crise existencialista, se questiona, ora mais dramaticamente ora em tom de quase comédia, sobre o porquê da caminhada no meio do nevoeiro e quando esta chegará a um fim. É certo que, para além de alguns elementos que são de facto pessoais, como excertos de filmagens caseiras realizadas pelo meu pai numa antiga máquina super8, entre 1978 e 1984, os materiais utilizados no espectáculo são uma interpretação dos motivos por mim sugeridos aos criadores. Logo se desmonta o pendor pessoal que eu comecei por mencionar, no resultado final. Portanto, a ideia do espetáculo não é realizar a minha autobiografia – não haveria lugar para semelhante absurdo no meu imaginário artístico – mas é partir dessa condição pessoal vivida, que descrevi, que se desenvolve uma autobiografia para o espectador que a quiser aceitar como sua ou de um outro, imaginado. 

© Francisco Ferreira

Não é teatro, mas também não é um concerto. O que é o espectáculo d’A fog machine?
Eu tendo a interessar-me particularmente por apresentar a música num ambiente para ela pensado, em que aspectos para além da difusão sonora são considerados, igualmente, parte fundamental. Não por exuberância, que a música não precisa de excessos ou de artifícios, e não me interessa isso, mas por uma questão de elevação da consciência narrativa; e, evidentemente, da poética, se puder vir a acontecer. Uma das particularidades deste espetáculo é ter um actor e um músico em palco. E um actor que usa a palavra que será, naturalmente, a mais significante das expressões, sobrepondo-se em objetividade à abstração da música. Há uma condução feita pela palavra. É, simultaneamente, um trabalho de palco em que por vezes os papéis do músico e do actor se confundem para um bem comum. De maneira que, tentando responder a uma pergunta para a qual não tenho uma classificação única ou um termo só, poderia dizer que A fog Machine e outros poemas para o teu regresso é um espetáculo que parte mutuamente da abstração da música e da significância da palavra, para que ambas potenciem a construção de uma narrativa de certa unicidade, que nem sempre será teatro, nem sempre será concerto, mas que será o resultado de uma relação íntima e indissociável entre partes. O João Reis é simultaneamente actor e o encenador do espectáculo. É ele que, com o seu infinito savoir-faire, fará das partes um todo.

João Pedro Oliveira, Arturo Fuentes e Martín Bauer escreveram peças novas para este espectáculo, mas não se trata de primeiras colaborações com os compositores. É-te normal fazeres-te acompanhar, ao longo dos anos, pelos mesmos compositores?
Sim, tem acontecido. É preciso tempo para amadurecer os caminhos da arte, é preciso repetir, experimentar mais uma vez. Perceber, anos depois de determinada colaboração, em que ponto estamos. É muito estimulante, também. Terão sido poucos os compositores ou outros artistas com quem não repeti colaborações; alguns de forma mais estreita e regular, é certo. Gosto, nessa relação continuada, de manter-me como o intérprete provocador, não só no sentido de desafio que o termo pode ter, mas também no sentido do agente de motivação que alavanca a criação, que a faz acontecer. Daí que, nos últimos anos, o meu trabalho seja, quase sem excepção, realizado em colaboração com outros criadores, partindo-se de um propósito artístico particular, que nos propomos aprofundar juntos. A repetição de colaborações funciona, para mim, como qualquer outro aprofundamento da relação humana, uma evolução num caminho para a intimidade. Assim, entre as partes, vai ficando escancarada uma nudez artística que me interessa muito, enquanto músico, expor e receber.

De onde surge a ideia de colaborar com Gonçalo M. Tavares?
O Gonçalo M. Tavares é um dos grandes escritores do seu tempo. É, para além do mais, um artista de grande sensibilidade, atento ao outro e ao mundo,  e isso era determinante para um projecto desta natureza, com o tal traço quase autobiográfico/existencialista. Portanto, o escritor teria que vestir um outro, o tal que mergulha no nevoeiro da vida e se interroga. Ao mesmo tempo é,  também, por assim dizer, um escritor muito musical. GMT produz uma literatura de maravilhoso trato sonoro, o que, seguramente pela deformação dos meus interesses, não consigo deixar de ter em conta.   

© Francisco Ferreira

Ao longo da criação do espectáculo, houve “contaminação artística” ou cada criador trabalhou desgarrado do resto do projecto na parte que lhe cabia? As peças musicais compostas para A Fog Machine poderiam ser peças para qualquer outro espectáculo?
Poderiam ser obras tocadas num outro contexto e serão, seguramente, em algum momento que isso venha a ser pertinente. Eu quis, aliás, que acontecesse um tipo de criação musical em que todos os envolvidos tivessem contacto apenas com o texto do Gonçalo M. Tavares e comigo, de forma estreita. Não fomentei qualquer encontro entre compositores. Achei mais interessante que não houvesse uma estratégia de criação musical conjunta, ou colaborativa. De maneira que, sendo feitas num e para um propósito artístico especial e particular e, por arte da encenação do João Reis e do texto de GMT, elas existam de forma “irmã” para o  espetáculo, cada obra tem garantida uma identidade forte, capaz e que evidencia os interesses de cada compositor envolvido.

Um espectáculo criado de raiz com apenas três apresentações – não há aqui um certo desaproveitamento do investimento humano, artístico e orçamental? 
Seria um desaproveitamento, com certeza, em toda a linha, se fizéssemos apenas as três apresentações por ora anunciadas. Mas, por questões de agenda e por estarmos num momento que parece ser, finalmente, o da retoma da normalidade pós-pandemia, em que os compromissos atrasados  das salas  de espetáculos são muitos, decidimos que começamos com três apresentações este ano e em 2022 continuamos com a circulação nacional e internacional. 

© design Carlos Santos

A seguir ao espectáculo A Fog Machine, andarás com outro projecto que é claramente um concerto, mas cujas obras foram, na sua generalidade, pensadas para este programa. O que é o Portugal | Japão? 
Há, por vezes, concertos ou outros espetáculos, cujo tema propõe unir geografias ou nações, encontrado suporte nos vínculos passados e/ou presentes. O nosso Pt | Jp não será, nesse particular, uma originalidade. É um espectáculo assente na observação de duas culturas que se conhecem há muitos séculos e que partilham momentos importantes das suas histórias. Ainda assim, e apesar do muito que ficou destes encontros, inclusivamente na língua, com tantas palavras comuns, de alguns hábitos, somos países muito diferentes, na contemporaneidade. O que acontece neste espectáculo é que, não obstante essa dimensão histórica incontornável, não se quis expor o passado com um intenção promotora de ideias para as obras criadas. Quis-se olhar para o Japão de hoje, o Portugal de hoje e fazer-se um concerto de percussão com música de compositores de ambos os países.  Convidámos um compositor português – António Chagas Rosa e um compositor Japonês – Atsuhiko Gondai, para escreverem duas obras novas para duo, e apresentaremos solos de dois outros compositores: a compositora Inés Badalo e o histórico compositor japonês Akira Miyoshi. 

Foi a escolha de Kuniko Kato para um duo que motivou o tema do concerto, ou terá sido antes o tema o que levou à escolha da solista japonesa?
Eu e a Kuniko Kato tínhamos vontade de fazer um trabalho conjunto há muito anos. Em 2011 falámos disso a primeira vez, depois de coincidirmos num festival de música para percussão e assistirmos aos recitais um do outro. Talvez mais pela diferença que pela semelhança, alguma coisa nos possa ter mutuamente estimulado a este encontro. Conhecíamo-nos desde 2000, ainda que superficialmente.  Eu tenho uma admiração muito grande pelo trabalho da Kuniko Kato, que trazia há muito tempo. Há gravações de obras que realizou que são absolutamente referenciais, como, por exemplo, a sua interpretação de Omar, do compositor Franco Donatoni. É uma intérprete invulgar, de uma delicadeza e acutilância desarmantes. De maneira que, por um lado, fazer este projecto seria sempre com a Kuniko Kato, por outro, a fazer um projecto com a Kuniko Kato, este tema era o que fazia sentido para uma primeira exploração em duo: as nossas músicas de agora. 

©Bruno Nacarato
© Bruno Nacarato

A criação de projectos não se fica pela Fog Machine e o Portugal | Japão. O que mais está para surgir?
A cooperativa cultural Limina, que co-criei e ajudo a levar para a frente, é um dos meus últimos grandes projectos e nesse âmbito surgem sempre coisas novas a fazer. É um projecto de continuidade, um centro multidisciplinar para as artes, no Porto, onde temos exposições regulares, desenvolvemos criações para o espaço público, edições. 
A título musical e  ainda para este ano, há dois projectos que gostaria de destacar por me motivarem particularmente: um chama-se Materis / Asperes ou o som do nada. É, muito resumidamente, uma proposta em formato de recital, sobre a transformação de valor de um objecto vulgar e sem aparente propósito artístico ou sonoro, quando elevado à condição de instrumento musical. É um trabalho que partilho com os compositores Luís Antunes Pena, Inés Badalo, Ricardo Ribeiro e Ângela Lopes. Outro projecto importante para os próximos tempos é a gravação de um disco monográfico do compositor João Pedro Oliveira. Neste disco ficarão registadas obras que o compositor me dedicou na última década, ou que eu estreei em algum momento desse período. Chama-se City Walk – Nuno Aroso plays João Pedro Oliveira. Conta com a colaboração do Clamat – colectivo variável, que é um grupo que dirijo e que foi recentemente formado. 

© Diogo Meira

Sendo tu um músico com tamanha criatividade, com mestria para improvisar momentos de autêntica poesia sonora, tendo inclusivamente escrito já alguma música, não te imaginas a registar em partitura algo a que outros possam dar corpo?
A fuga eficaz à pergunta seria afirmar peremptoriamente que não penso no assunto. Creio que já o fiz antes, não por querer oferecer uma inverdade como resposta, mas por não querer assumir a posição que talvez estivesse pouco formada. Nesta altura, prefiro dizer que penso em música, evidentemente, e penso, por vezes, que gostaria de sistematizá-la numa partitura ou em qualquer outro meio, para outros a tocarem. Se é música merecedora disso, já seria um outro assunto. Talvez por isso também trabalhe tão estreitamente com os compositores, em alguns casos sem quase se poder, pelo resultado, vislumbrar uma autoria única. Será uma maneira de também “escrever” a música, mas de maneira mais protegida. Mas assumindo-se a parte de que tenho tido esse impulso (pouco concretizado, é certo), faço-o, ainda assim, com reservas – reservas essas que são não mais do que o pudor de quem não se sente totalmente em posse do métier que tal exercício exige e, sobretudo, merece. Posto isto, acrescentava ainda que, para mim, música não deve ser demasiadamente levada a sério nem sacralizada, elevada a uma condição de superioridade de qualquer âmbito. Não tenho, de forma nenhuma, essa relação com a música, que só me distanciaria dela, mas é certo que, se não for criada e acarinhada como arte, com toda a dimensão que isso pode representar, não serve para muito qualquer esforço que pela música se venha a fazer.

A partilha de experiências e saber, nomeadamente nas aulas que dás no Ensino Superior em Portugal e Espanha, ou mesmo nas Master Classes que orientas pelo mundo fora, parecem ocupar muito do teu tempo. Ensinar rouba-te espaço para a tua arte ou acrescenta alguma coisa ao teu percurso musical?
A actividade docente é uma parte importante da minha vida, sem dúvida, e eu gosto muito de estar na sala de aula. Ao fim destes anos, percebo que estar na universidade, com os mais novos, em permanente reciclagem e descoberta, vem acrescentando muito à minha construção pessoal e artística. É, inclusivamente, desse ambiente de laboratório artístico que nasce um dos projetos que, já fora da universidade, tomará uma parte importante dos meus próximos anos: o Clamat – colectivo variável. É um grupo de formação variável, que dirijo e que integra alguns dos mais interessantes jovens percussionistas portugueses, ou recém-formados ou nas fases finais das suas formações. Trabalhamos num ambiente de investigação artística e propomo-nos fazer nova música em que a percussão é objecto central de pesquisa.

Muito obrigada pelas tuas respostas!

entrevista realizada em Setembro de 2021, por Diana Ferreira