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António Chagas Rosa: singular compositor

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O seu trabalho é marcado por um profundo respeito para com a tradição de que é herdeiro, mas está muito longe de se limitar a reproduzir os modelos. António Chagas Rosa (Lisboa, 1960) é um compositor singular, autor de um conjunto sólido de obras que importa descobrir.

Nas vésperas da estreia de uma obra que escreveu para a Orquestra XXI– com estreia em Madrid, no encerramento da Mostra Portuguesa (16. Dezembro)- e de um concerto em que o Drumming GP interpretará, no Teatro Aveirense (10. Dezembro), a sua épica Mares, para sexteto de percussão, a Arte no Tempo teve oportunidade de conversar com o compositor.

foto © Bruno Nacarato 2015   
(Atelier de Composição)   


[AnT] É por natureza discreto e Portugal parece não se dar conta da sua importância mas, dos compositores que vivem no país, acaba por ser dos que têm mais encomendas e obras tocadas. Como avalia a atenção que Portugal dá ao seu trabalho de compositor?

[ACR] Obrigado pela sua observação, que não deixa de ser um grande estímulo para mim. Em Portugal, desde 2000 que tenho recebido encomendas da Casa da Música, sobretudo. Em anos recentes surgiram também solicitações e convites por parte de outras estruturas, tais como o Sond’Ar-te Electric Ensemble, o Drumming Grupo de Percussão, o grupo Síntese da Guarda, o Festival Cistermúsica de Alcobaça e, mais recentemente, a Orquestra XXI. É o suficiente para me manter ocupado, a par de propostas que são feitas por músicos independentes.

Como é que o estrangeiro o descobriu?
Para tal contribuiu a iniciativa do festival Músicas em Novembro (Teatro Nacional de São Carlos, direção artística de Paulo Ferreira de Castro, 1998 e 2000), que possibilitou um intercâmbio de obras portuguesas e austríacas com o Klanforum de Viena a tocar uma obra minha e outra da Isabel Soveral em Viena e em Lisboa em 1998. Depois disso foi o contacto estabelecido com o diretor artístico do Ensemble Musicatreize (Marselha), que me convidou para escrever um conto musical para o ensemble (um coro de câmara de 12 vozes mistas) para 2006. O Roland conheceu-me em 2004, em Amesterdão, onde dirigiu o Nederlands Kamerkoor com uma obra minha em estreia. A partir daí surgiram novas encomendas vindas de França.

Em 2015 estreou duas obras- Lumine Clarescet, obra de grande fôlego para 18 vozes mistas, e Paysages, para flauta de bisel e pianoforte- e na próxima semana estreia mais uma, para orquestra de câmara. Considerando que, além de compor, ensina música de câmara longe de casa, seria possível responder a mais encomendas?
Os anos de 2014 e 2015 foram especialmente produtivos. Por vezes não consigo entender como me vou organizando para compor. Sinto que tenho espaço mental e energia para continuar a escrever “cronicamente”, mas sou, no entanto, sensível à necessidade de não aceitar fazer aquilo que está para além das minhas forças.

Como gere a atenção que dedica a diferentes projectos de composição? Enquanto escreve uma obra, está já a pensar na seguinte?
Francamente não. Evito a dispersão. Naturalmente fico absorvido por uma só obra quando escrevo.

Que projectos tem agora em mãos e onde podemos ouvir música sua em 2016?  
Tenho em mente alguns projectos, não se tratando porém de encomendas. Estou a trabalhar numa peça para violino solo, escrita a pedido do violinista do Remix Ensemble, José Pereira, para constar do seu novo cd. E ando a acalentar a ideia de conceber um ciclo vasto de peças para piano solo, já que surgem muitas solicitações nesse sentido. Em 2016, o que tenho agendado (e que seja do meu conhecimento) é um concerto na Casa da Música, no dia 23 de janeiro, com uma obra para orquestra e quarteto de cordas (Antinous).

Exceptuando os “compositores da moda” e uma ou outra obra solo que acaba por cair em repertório, nos tempos que correm ainda acontece muito que um compositor só tenha oportunidade de ouvir as suas obras no momento da estreia. O que é que sente ao saber que o Quarteto de Matosinhos e a Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música vão pegar em Janeiro numa obra sua com mais de 20 anos?
Fico feliz, por um lado, e inquieto, por outro. Não porque não me reveja esteticamente na obra, mas sim por ela ser complexa e de difícil montagem.

O Drumming GP lançará esta semana, pela mpmp, um disco com a integral da sua obra para percussão. Isto significa que a percussão fica arrumada, ou haverá mais obras depois destas?
Afinal o lançamento será adiado por algum tempo devido a razões de ordem técnica. Não por muito tempo, espero, dado que o tratamento final das gravações está praticamente concluído. Sinto-me bem a escrever para percussão, que é uma linha de trabalho extremamente libertadora. Penso que surgirá algo de novo, no futuro, com percussão, talvez mesmo de natureza cénica.

A propósito da escrita para voz, uma vez disse que “a música sai do texto”, na medida em que há uma relação profunda entre o que procura transmitir em música e a mensagem contida nas palavras. O que acontece quando pega numa obra vocal e a transforma numa obra instrumental, como é o caso da Audivi Vocem, que acaba de compôr para a Orquestra XXI, a partir da obra homónima de Duarte Lobo? O texto ainda lá está?
O texto pode servir como razão de ser da música. É lógico que assim o seja quando o compositor escreve para vozes, partindo obviamente das palavras. O grau de dependência dos sons relativamente à matéria poética é que varia de compositor para compositor, de acordo com a “encenação” musical que cada um faz para si. No caso concreto de Audivi vocem, que é uma obra instrumental e não vocal, se bem que haja como ponto de partida um motete em latim com um determinado sentido ou mensagem, há também uma grande liberdade relativamente ao percurso poético da obra de Lobo. Extraí ao texto o que fazia mais sentido para mim (“escutei vozes celestes”) e retirei à partitura original uma série harmónica que trabalhei na minha peça, adaptando-a às minhas próprias necessidades de construção.
 
De que forma é que revisitar um compositor do passado, sobre o qual tão pouco se conhece, pode revelar-se um desafio interessante para um compositor de hoje?
Pode ser um desafio interessante mas também pode resultar num exercício algo constrangedor se pensarmos que a obra visitada encerra uma grande beleza que esta só poderá vir a manifestar-se traída pela intervenção do compositor visitante… Eu precisei de algum tempo para me libertar do ambiente sonoro de Duarte Lobo e acreditar na validade da metáfora que fiz do mesmo para uma orquestra de câmara contemporânea.

Do seu catálogo, actualmente com 43 títulos, 22 correspondem a obras com voz. Esta incidência na música vocal deve-se mais ao seu trabalho de correpetidor em Amesterdão ou à necessidade de aliar a música à palavra?
Por acaso eu ainda não tinha feito esse balanço, e a questão dá-me que pensar, admito. Penso que, por um lado, o trabalho na Ópera de Amesterdão e no Sweelinck Conservatorium da mesma cidade me proporcionaram uma grande cumplicidade com a voz humana e os reportórios eruditos ocidentais; por outro lado, o catálogo foi crescendo ao sabor daquilo que foi surgindo no meu caminho.

Escreveu também quatro obras em que utiliza o quarteto de cordas. Isto denota alguma espécie de ligação com a tradição clássica?
Devo admitir que o quarteto de cordas é uma formação dificílima de dominar sob o ponto de vista da escrita. Atrai e intimida, simultaneamente. Senti em várias ocasiões na minha vida a necessidade de escrever para ou com quarteto de cordas, sim, mas no intuito de aprender a fazê-lo com competência. Não sei se o consegui, mas tentei…

Regressando a conversas passadas… A propósito da relação da música com outras formas de expressão artística, há uns anos revelou-nos que gostaria de compor para um espectáculo com dança, assim como para cinema. Este tipo de desejo fica à espera de que a oportunidade surja, ou os compositores também vão à procura de oportunidades?
Sim, em conversas passadas falámos sobre esse desejo. Na altura essa ambição, chamemos-lhe assim, despontava em mim. Em anos mais recentes senti-me bastante feliz com os resultados obtidos na escrita para os coros de câmara Les Éléments e Musicatreize. Comecei a aproximar-me de uma concepção sonora mais restrita, em termos de meios envolvidos, e as ideias de música para dança ou para o cinema deixaram de me inquietar. Naturalmente não andei à procura dessas oportunidades, mas houve momentos em que alguns convites e ideias se esboçaram mas que não vieram a materializar-se.
 
Na mesma altura, afirmou que os coreógrafos se queixam de que a sua música reclama demasiada atenção, quase como se o protagonismo fugisse do movimento em palco para o som. De que modo se pode lidar com a preocupação de criar música que, além de responder a uma necessidade conjunta, valha por si mesma, sem ofuscar bailarinos e sem se subalternizar?
Sim, tem razão. Eu já me tinha esquecido dessa crítica que me foi feita por alguns coreógrafos que ouviram música minha. Embora a questão tenha deixado de me preocupar, como acima lhe referi, eu creio profundamente na aliança da música com a dança, e não vejo porque música densa, e que tenha a sua vida autónoma, não possa vir a ser abordada por um coreógrafo imaginativo. Aliás já o vi em algumas criações de Mats Ek. Creio que um trabalho de raiz que envolva um compositor e um coreógrafo, em sintonia artística, poderá resultar numa etapa de trabalho fascinante.

Quando aos 10 anos começou a estudar piano, sentiu de imediato que a música seria algo “muito sério” na sua vida; mas antes de sair de Portugal, completou ainda uma licenciatura em História. Essa passagem pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa foi fruto de uma indecisão ou um deliberado complemento de formação?
Foi um complemento de formação deliberado, como muito bem formula, que me foi extremamente útil. Para além da satisfação em aprender, tive uma plêiade de professores irrepetível, que contava com Vitorino Magalhães Godinho, José Mattoso, A. H. de Oliveira Marques e Joel Serrão, entre outros. Foram professores inesquecíveis que, para além da vasta obra publicada, espelho do seu saber, sabiam ensinar aos alunos como dominar as ferramentas da investigação. Penso sempre neste curso com gratidão.

Como surgiu a necessidade de prosseguir os estudos musicais fora do país?
Fui para Amesterdão como bolseiro da Fundação Gulbenkian, em 1984, tal como faziam muitos outros músicos portugueses da minha geração. Estava-se a viver uma fase depressiva tanto na vida musical como no ensino, em Portugal. Não havia maneira de se aprender mais cá dentro.

E a descoberta dos caminhos da composição?
Enquanto aluno do Curso Geral de Composição no Conservatório Nacional de Lisboa, tive aulas extremamente estimulantes com Constança Capdeville. Era um fascínio escutá-la, não apenas enquanto professora “desconstrutora” de mitos e lugares-comuns, mas também como compositora e autora de um conceito pessoalíssimo de teatro musical. Fui acompanhando como pude as suas estreias no ACARTE, em Lisboa.

Em que medida é que a formação que teve na Holanda influenciou o seu percurso de compositor?
O meu percurso de compositor pós-Constança Capdeville não tem tanto a ver com a formação de Composição propriamente dita que tive na Holanda (no Conservatório de Roterdão), mas sim com o meu trabalho de pianista independente que me fez participar em muitos ciclos de concertos dedicados à nova música holandesa. O contacto com instrumentistas e compositores que daí adveio foi realmente o agente mais tangível do meu crescimento.

Apesar de não participar em concursos, a sua música já obteve alguns prémios. Terão actualmente os concursos uma importância exagerada na validação do trabalho de um compositor?
Uma resposta breve: têm.

Há uns anos, falou de “uma evolução económica desfavorável às artes contemporâneas, uma terrível tendência mercantilista para se fazer só música de compositores muito conhecidos, a que o público [garantidamente] adira”. Para além da experiência de compositor e de professor, tem também a de programador. Que aspectos considera que não podem, em circunstância alguma, ser ignorados no exercício da actividade de programação?
Penso que um programador generalista deve criar espaço tanto para a tradição revisitada (que é do agrado do grande público) como para os projectos criativos de maior ou menor risco. Os programadores estão ao serviço de instituições que têm objectivos e financiamentos próprios, com as quais frequentemente o diálogo é difícil. Quanto maior for o peso da instituição, menor será o espaço de manobra do programador, a não ser que estejamos a falar de um festival especializado numa determinada franja de produtos performativos. Isto é uma tendência que não se limita a Portugal.   
 
Diz que faz o possível para que a sua música não seja “anti-ouvidos, anti-humana”, assim como que o aflige fazer música para o “gueto da música contemporânea”, coisa que não lhe traz felicidade nenhuma. Schönberg, que era também um compositor com uma forte ligação à tradição, dizia que “se é arte, não é para todos; se é para todos, não é arte”.  Acredita que a música que faz pode comunicar de forma universal? E, se o faz, é ainda arte?
Schönberg disse coisas fascinantes que frequentemente se contradizem, mas vou tentar responder às sua duas questões da forma mais sucinta e sincera possível: 1) acredito que a música possa comunicar de forma universal e que há momentos na minha música onde esse  potencial reside; 2) se a linguagem “música” comunicar de forma universal não vejo nada nesse universalismo que desmereça ou retire à música a sua condição de arte.  

A investigação que fez sobre Schönberg, no âmbito do doutoramento, teve alguma influência no seu trabalho de composição posterior?
Confesso-lhe que não sei, pois raramente analiso a posteriori aquilo que faço, mas teve seguramente uma influência enorme sobre o meu entendimento da música erudita no Ocidente e sobre o meu trabalho como docente. Deu-me acesso ao entendimento de ferramentas de compositor que, estando próximas da minha prática pessoal de músico, eu não havia identificado

A academia e todas as exigências da carreira académica representam, para si, o suporte que garante resposta às necessidades materiais, a necessidade de provar que o compositor também pode ser um cientista, ou um desejo de crescimento pessoal em diversos domínios?
A academia responde neste momento às necessidades materiais, evidentemente, como antes fora o Conservatório de Amesterdão. Mas, muito mais importante que isso, assinalo o facto de gostar de ensinar e até precisar de o fazer de modo a nunca deixar de me sentir aluno. A noção do compositor cientista até nem é todo estranha à realidade da música, que já pelos Gregos do Classicismo era encarada como sendo parte ciência e parte arte. Penso, pessoalmente, que o compositor não precisa de competir com as ciências ditas exactas como forma de legitimar o seu trabalho (ou investigação), pois a matéria com que lida tem conformidades únicas. Este seria um belo tema para uma longa conversa…

Em tempos, a propósito do seu processo de composição, disse que uma peça “começa por ser um jogo um pouco anónimo de tensões” e que, para si, as tensões mais fortes vêm da harmonia, não deixando de atribuir grande importância ao ritmo e ao timbre. A atenção dedicada à harmonia será o que permanece como elemento mais presente ao longo do seu percurso de compositor?
Sim, é um facto que permanece. Isso ressalta das obras que tenho escrito nos últimos anos. Quanto ao ritmo, posso afirmar que o “uso” de forma mais consciente desde que fiz o estudo sobre as relações entre ritmo e significados semânticos no universo do op. 156 de Schönberg, no âmbito do meu doutoramento.

A propósito de aspectos tímbricos, disse que gostaria de poder escrever mais para orquestra e que as oportunidades são escassas. Os concursos de composição não poderão precisamente ser encarados como um janela de oportunidades?
Sim, os concursos de composição constituem uma oportunidade mas acabo sempre por me encontrar fora dos prazos. Talvez os concursos não me queiram a mim…

De todas as suas obras, quais gostaria mais de ver circular em diferentes palcos?
Sem pensar muito: A Wilde Mass, de 2013, para coro de câmara e órgão, sobre textos de Oscar Wilde extraídos ao De Profundis. Sinto que é a minha obra mais sincera.
Obrigado pelas suas questões!

Muito obrigada pelas suas respostas!

entrevista realizada em Dezembro de 2015, por Diana Ferreira