Menu Fechar

Luís Antunes Pena: entre som e partitura

Pena LA Nov 2010 72dpi 06 c Tobias Bohm

Reside na Alemanha há dezassete anos, onde tem desenvolvido intensa actividade como compositor. Em Portugal, é visto como um dos mais respeitados compositores da sua geração. A história de Luís Antunes Pena (Lisboa, 1973) está directamente ligada à criação da Arte no Tempo, sendo um dos três fundadores de um dos projectos que conduziram à criação da associação: as Jornadas Nova Música (1997-2001).

Por ocasião da estreia portuguesa do trio que formou em 2010 com o percussionista Nuno Aroso e o violoncelista Francesco Dillon (Ruído Vermelho), cuja digressão acompanha o lançamento do segundo disco monográfico que a Wergo teve este ano ocasião de lhe dedicar, a Arte no Tempo ocupou algumas horas do compositor para se aproximar do seu actual pensamento.

foto © Tobias Bohm 2010  

[AnT] Diz que a ida para outro país foi importante porque lhe permitiu desmistificar o papel do compositor e que tinha, em Portugal, uma visão de periferia.
[LAP] Sim, de periferia no sentido de colocar os compositores numa espécie de pedestal, de os mistificar, mesmo. Em Portugal, os compositores eram vistos quase como deuses inacessíveis- pelo menos, era esta a ideia que eu tinha.

Na Alemanha será diferente por haver muito mais compositores e por essa ser, portanto, uma profisssão banal?
É diferente se vamos a um país e estamos lá uns dias e depois voltamos para casa… Aqui [na Alemanha] os compositores vão a concertos, estão lá sentados… Há uma vivência diferente, que me fez falta. Em Portugal fazia-me falta sentir que os compositores são pessoas como nós, comuns, com necessidades básicas.

Mas isso foi o que sentiu depois de lá estar, não foi o que o fez partir
Não, mas tinha já a intuição de que era preciso estar no sítio onde as coisas acontecem. É preciso não esquecer que o contexto de há dezassete anos não era o mesmo de agora. Em alguns aspectos era melhor, noutros não. Mesmo a internet, por exemplo, não tinha a dimensão que hoje tem. Hoje temos mais acesso à informação- embora seja um lugar comum dizer-se que se pode ter acesso a tudo na internet e isso não seja bem verdade, porque temos que ser nós a fazer a selecção perante a quantidade enorme de informação que temos à disposição. Não existindo um ambiente que faça essa selecção por nós, pode até ser contraproducente ter demasiada informação, pois não se consegue lidar com esse excesso, pôr a informação nas prateleiras certas, digamos.

Esteve para ir para Paris mas, perante a morte do compositor Gérard Grisey, com quem queria trabalhar, escolheu a Alemanha. Como acabou por escolher o professor Nicolaus A. Huber?
Naquela altura [1998], conheci um compositor alemão que estava a viver em Lisboa, o Klaus Schedl, que me sugeriu que fosse a Munique falar com o professor de lá, o Hans-Jürgen von Bose. Fui ter com ele e ficou mais ou menos claro… Mas, na mesma altura em que fui visitá-lo, escrevi ao Nicolaus A. Huber, que me escreveu uma carta muito simpática a dizer que poderíamos trabalhar juntos. No final, creio que a decisão mais acertada foi a que tomei, porque o Huber é uma pessoa que tem mais a ver comigo, com quem aprendi muitíssimo. Quando cheguei a Essen, o Huber tinha uma classe de composição muito activa, dinâmica, com imensas pessoas a trabalhar e a fazer muita coisa interessante.

A música dos compositores que provêm dessa classe apresenta traços que a caracterizam?
Isso é, para mim, difícil analisar, mas penso que há uma atitude comum a muitos alunos…

Em termos de resultado musical, não consegue dizer que pertence a essa “família”?
É-me difícil identificar-me assim. Muitas vezes, as pessoas dizem-me que a minha música tem algo do Huber, mas também algo do Emmanuel Nunes ou de Grisey… Para mim é difícil identificá-lo. Quando trabalhei com estes compositores, o mais importante para mim não era conseguir apreender aquilo que eles próprios faziam enquanto compositores, mas sim tentar desenvolver aquilo que eu trazia, e com cada um deles desenvolvi coisas diferentes. Talvez seja difícil identificar em mim traços concretos do Huber ou doutros compositores. Mas voltando à questão, sim, penso que há traços comuns entre os alunos da classe do Huber, por exemplo, na identificação do ritmo como elemento importante, embora feito de maneiras muito diferentes. Penso que todos trabalhámos, por exemplo, na recusa de um certo tipo de gestos que se identificam com o modernismo do início do século XX, ou mesmo com o romantismo mais tardio e, principalmente, numa atitude de percepcionar a realidade da partitura, que é uma coisa que parece banal, mas não é.

O que quer dizer com “realidade da partitura”?
A realidade do resultado sonoro da partitura, quer dizer, uma mistura muito próxima entre as ideias que existem na partitura (e na música) e a sua realidade acústica.

Quando diz que, ao trabalhar com os compositores que referiu, o que o preocupava não era absorver aquilo que, de certa forma, seria o estilo de cada um deles, não acha que terá tido a sorte de que também eles não quisessem impor um estilo?
Sim, é verdade. Tive essa sorte, embora não com todos da mesma maneira.

Começou a trabalhar com Nicolaus A. Huber em 1999. O que é que foi mudando na sua forma de pensar e no seu trabalho de compositor?
Creio que mudou muito porque, quando cheguei à Alemanha para estudar com o Huber, eu estava muito envolvido na música espectral. E comecei a absorver outras ideias que levaram a uma mistura, digamos, da música espectral com uma forte ideia de combinatória… de perceber a composição, não só como som, mas também como elementos que são sujeitos a processos combinatórios, permutações, trabalho com estruturas abstractas e por aí fora. Creio que isso é importante porque o aspecto da música espectral não desapareceu nunca da minha música, mas eu não tenho quase nenhuma música que se possa dizer espectral- tirando, talvez, a Trajectórias, que foi a última peça que fiz em Portugal. Embora haja sempre aspectos de espectralismo, não são músicas espectrais, no sentido que conhecemos de Grisey ou de Murail.

Que sentido é esse?
É o sentido de levar o som tão a sério que todos os outros elementos ficam para segundo plano. Para mim, o som é importante, mas também o é percepcionar os sons como notas, portanto há uma camada de abstracção entre o som e a partitura.

Que outros elementos são esses, que não o som?
São algumas coisas que vim a aprender, também através do contacto com a música de Lachenmann, sobre a qual estive debruçado durante algum tempo para escrever um trabalho grande. Com ele aprendi uma coisa muito interessante que são conceitos de interpretação super-subjectivos baseados em estruturas muito concretas. Lachenmann usa, por exemplo, uma terminologia para a composição dele que é muito interessante: conceitos, palavras concretas que remetem o compositor para um imaginário subjectivo, que levam depois a que essa palavra concreta seja interpretada de maneiras diferentes. E esse aspecto foi muito interessante porque exprime também uma contradição grande- pela qual é, por vezes, criticado- entre dois sistemas de composição: um muito subjectivo, porque só ele pode explicar como é que chegou àquele resultado a partir dali, e outro muito concreto, no caso do Lachenmann até serial, mesmo. Para mim isto mistura-se com tudo o que aprendi. Outro elemento da minha aprendizagem que me é hoje importante tem origem na Escola Superior de Música de Lisboa: o estudo de Pierre Schaeffer com o António Sousa Dias.

Entretanto, já passaram vários anos desde que terminou os estudos. O que é que vai permanecendo como identificativo do seu trabalho? O que tem vindo a mudar, desde que deixou de ser aluno e passou a ser um compositor autónomo?
Penso que na altura em que estudava já tinha uma certa autonomia. Já tinha quase 27 anos quando vim estudar com o Huber e ele tratava-me de forma diferente da que tratava os alunos que iam estudar com ele aos 18 anos. Portanto, apesar da aula não ser bem só uma conversa, era uma hora em que estávamos ali a trocar ideias sobre a partitura e tudo. Havia pouco aquela ideia escolástica de “mudas esta nota e esta aqui, ou fazes assim ou fazes daquela maneira”. Trabalhávamos mais aspectos gerais, menos concretos, embora o Huber também se debruçasse, por vezes, sobre as notas, uma a uma. Ora, o que é que mudou? Muita coisa, porque penso que a minha maneira de ver a composição também foi mudando, porque também a sociedade mudou, não é? Todos nós mudámos. Um aspecto que tem vindo a ser mais importante para mim, especialmente nos últimos anos, é a ideia de que a música não é parte separada da sociedade: existe com a sociedade, dentro dela, e só assim a sua existência faz sentido. Isto pressupõe uma troca, entre a sociedade e a música, de conhecimentos, de experiências, a que o compositor também reage, porque é um ser integrado na sociedade. Penso que isto é muito importante e esta ideia de compositor não foi sempre assim percepcionada …muito romantizada com a figura de Beethoven. Mesmo com Beethoven já era diferente. Não concorda?

Estou a pensar se o compositor seria mesmo um ser assim tão à parte ou se foi uma certa historiografia que nos deu a percepção de que o compositor o era. Mesmo Beethoven tinha preocupações políticas e sociais bastante acentuadas.
Exacto, mas não se exprimiam também directamente na partitura. Não estou a defender para agora uma música política, mas sim uma forma de percepcionar a música que não seja diferente daquela em que a sociedade funciona. Quer dizer, a música não transmite nada, não há nada de concreto que a música possa transmitir, mas ela comunica algo de um modo sensível. Este algo tem a ver também com ideias que podemos exprimir com música, com as notas, os sons, os ritmos. E esta ligação entre as ideias que podemos incorporar numa música e a sociedade é algo que não teve tanta atenção, digo eu, nos anos 60, 70, 80, 90… E penso que, a partir de uma certa altura, essa percepção começou a mudar. Creio que hoje um compositor percepciona a necessidade de ser uma pessoa integrada na sociedade, no sentido da sua música ser percepcionada, não só nos festivais de música contemporânea, mas para além disso.

LAP2

Isso é um aspecto sensível. Como é que isso acontece na Alemanha? Qual é a relação do compositor com o público?
Bom, na Alemanha, ao contrário do que tem acontecido em Portugal, existem ainda festivais de música contemporânea, cuja origem remonta ao pós-guerra. Esses festivais vão-se transformando conforme as pessoas que assumem a sua direcção, mas também conforme os compositores. As gerações de compositores vão mudando e vão acrescentando elementos novos. Penso que há toda uma geração de compositores que partilha esta ideia de hoje a que me refiro. Isto não significa que a música seja mais acessível, mas significa que existe uma preocupação em comunicar as ideias que existem na música, seja através da música propriamente dita, seja através de meios paralelos. A ideia de que o compositor existe na sua secretária, compõe e depois apresenta a obra, é uma ideia menos presente. Pelo menos, é assim que percepciono.

Que meios paralelos são esses?
Conferências, textos, discussões…

Mas isso já se faz há muito, não?
Não. Mesmo, por exemplo, o compositor, através dos meios sociais…

…Da comunicação social?
Não! Dos meios da internet, do Facebook ou doutros blogues… não existe assim há tanto tempo. Hoje, pelo menos na Alemanha, existe uma acesa discussão entre os próprios compositores que não havia há dez ou vinte anos, desta maneira.

Online?
Online, mas também através da publicação de livros. Por exemplo, nos últimos anos têm surgido três ou quatro livros sobre nova filosofia da música, com textos de compositores, musicólogos, filósofos… Há uma discussão aberta sobre a música e o papel da música na sociedade. Penso que isso é importante. E não havia há dez, vinte anos. Existiam os festivais de música, em que não há praticamente discussão, não é? As peças eram colocadas sem contexto, digamos assim.

Mas fala de discussão, o que pressupõe resposta. Há livros que respondem a outros livros?
Sim, mas há mesmo discussões publicadas em livros, com perguntas e respostas.

Pode dar um exemplo?
Não é única, mas a face mais visível desta discussão é o Johannes Kreidler, que publica livros, discussões, por exemplo, com o Claus-Steffen Mahnkopf. Têm um livro de discussão sobre vários temas da actualidade, de música electrónica, de música conceptual. Por acaso, voltando atrás, outra influência importante para mim foi o estudo do livro The soundscape, do Murray Schafer, em que ele propõe uma visão da história da música não baseada na música sobre música- aquela ideia de que antes do Bach era assim, depois do Bach vem este, depois veio o Mozart que mudou isto, depois este mudou aquilo… baseada só na música, na partitura, sem considerar tudo o resto, à volta… É interessante, por exemplo, considerar que a música que escrevemos ainda hoje é principalmente feita para a sala de concertos. Não foi sempre assim que se ouviu música: numa sala de concertos, com uma posição frontal, em que as pessoas estão sujeitas a um protocolo de comportamento… Claro que a música que nós fazemos está directamente ligada também ao desenvolvimento deste espaço que apareceu no século XVII, XVIII e que existe até hoje, com poucas modificações (algumas modificações ligadas à música electrónica, espacialização…), mas não é a única maneira de perceber a música, nem o único espaço onde se pode percepcioná-la. É interessante considerar que a polifonia, por exemplo, existia também por causa do espaço da igreja, com as cúpulas em que o som se dirige todo para um certo ponto, considerando o espaço onde se faz a música como um aspecto importante para a música propriamente dita. Há um festival em Colónia que se chama “Brücken musik”, a música das pontes, em que, por exemplo, os compositores são convidados a fazer uma peça para o interior de uma ponte que atravessa o Reno.

O interior… em baixo?
Exacto, um túnel por baixo da ponte. Em cima há o tabuleiro onde passam os carros e o eléctrico e, abaixo desse tabuleiro, há um túnel em que se realiza um festival anual de alguns dias, em que são convidados músicos, compositores ou “sound artists”…

E o público vai para esse túnel ouvir a música.
Exacto. É um caso concreto e extremo de um local para o qual não se pode fazer uma música qualquer: tem que se escolher muito concretamente a música para se fazer para ali, porque nem tudo funciona.

Mas quando fala de compor na secretária para o palco, ou mesmo o trabalho para os túneis da ponte, está a falar de um género… de uma forma “erudita” de pensar a música…
Sim, sim!

Porque se pensarmos, por exemplo, na música que é feita para uma discoteca onde as pessoas dançam, de facto, a música não vem de frente, nem importa de onde é que ela vem… As pessoas estão ali para dançar. Quem faz essa música sabe que ela se ouve muito, mas há pessoas a falar ao mesmo tempo. Isso é um outro contexto e é também música dos nossos dias. O que é que distingue esta música que diz ser há séculos pensada da mesma forma, em que temos o público virado de frente para um palco, e esta outra que é feita para se consumir sem ser de frente para um palco?
Vou responder a essa questão doutra forma. O que eu queria demonstrar com este exemplo é que a música que chamamos erudita- eu não gosto tanto de usar esta palavra, prefiro música actual para concerto- no fundo, é uma música que existe num contexto de funcional. Existe, é música que é feita para uma sala de concerto, para as pessoas ouvirem de determinada maneira, mas não é a única maneira de fazer e pensar a música- é isto que quero dizer. Considerar escrever música para um determinado espaço é algo que foi completamente ignorado durante muito tempo, nesta música, e é um dos aspectos que contribui para que a música mude. Como diz, a música que se escreve para uma discoteca não pode ser a mesma que se escreve para uma sala de concertos. O espaço é também um parâmetro da composição. E a história da música pode ser explicada considerando também este parâmetro que, na maior parte dos livros, tem um lugar muito secundário.

Mas o espaço acaba por aparecer logo quando se fala dos Gabrielli e, depois, da segunda metade do século XX.
Exacto! E aí existe a técnica de composição ligada ao espaço. Nós também temos em Portugal o exemplo do Convento de Mafra, que é o único que conheço com 6 órgãos. Sim, no século XX existe, mas existe uma outra atitude, em que o espaço é criado através da electrónica.

Não só. Por exemplo, no Quodlibet [de Emmanuel Nunes] temos os instrumentos a circular e dispostos de uma forma específica… E em Stockhausen… Pressupõe-se, de qualquer modo, que o público está no centro desse espaço.
Exacto. Isso que conhecemos do Quodlibet também existe, por exemplo, no Prometeo do Luigi Nono. Claro que são obras marcantes, porque quebram esta ideia de que a sala de concertos tem que ser assim… É óbvio que essas obras consideram o espaço como um parâmetro da composição; fossem elas escritas para outros locais, seriam diferentes. Mas a maior parte da música que escrevemos existe para a sala de concerto. E considerar o espaço como um parâmetro da composição não é algo muito trivial… É algo que se aprende. Mas estamos agora a falar do ponto de vista da composição. Se falarmos na perspectiva da explicação da história da música, então, este livro do Schafer mostrou-me aspectos muito novos. Por exemplo, quando comparamos o modo de percepcionar o som na cultura europeia e na japonesa… As casas tradicionais japonesas têm paredes em papel: isolam a visão, dum lado para o outro, mas não o som. O som é transparente. Isto é o contrário do que fazemos na Europa: temos janelas grandes, em que a visão é transparente, mas o som é “completamente” bloqueado… Os jardineiros tradicionais japoneses têm uma sensibilidade para criar ambientes sonoros completamente diferentes daquilo a que estamos habituados na Europa: planeiam um riacho ou uma queda de água que passa por determinados vasos e os vasos são afinados em determinados sons, ou em determinadas notas para produzir um certo som. Há um cuidado muito mais atento ao som, à maneira de se escutar a música- se considerarmos isto música. Eu considero, claro.

Claro, porquê?
Tudo o que nos faz percepcionar o fenómeno acústico, para mim, é algo que nos traz uma ideia nova sobre a música, sobre a maneira de percepcionar o mundo. Actualmente considero pertencentes à composição muito mais aspectos do que antigamente considerava. Considero parte integrante da composição tudo o que implica maneiras novas de ouvir a música.

partitura

Voltando atrás, como é que tem sido a sua integração na vida alemã? Tem conseguido o mesmo tipo de tratamento que qualquer compositor nascido na Alemanha?
O CD que saiu agora, “Caffeine”, existe no âmbito de uma série criada pelo Conselho Alemão da Música, intitulada compositores alemães da actualidade. Nesse aspecto, sim: estou completamente integrado.

As oportunidades que vai tendo na Alemanha são criadas por si, porque sempre foi uma pessoa activa, ou são-lhe concedidas com a mesma facilidade com que o seriam a um alemão? Em termos de ensino, por exemplo, o facto de ser estrangeiro pode ser uma vantagem ou uma desvantagem em termos de contratação?
Penso que houve uma altura a seguir à guerra em que existia de facto uma discriminação positiva em que, eventualmente, ser estrangeiro poderia ser uma vantagem. Penso que hoje não existe essa discriminação, pelo menos, não sinto directamente nenhuma discriminação, positiva ou negativa. Na Alemanha existe menos do que em Portugal, por exemplo, a ideia de fazer música só com compositores alemães, ou projectos só com compositores nascidos aqui. Penso que há uma atmosfera muito produtiva, muito criativa, muitos compositores que trabalham, e as oportunidades surgem de várias formas. Eu gosto de criar projectos. Depois da nossa experiência das Jornadas [Nova Música], ficou o gosto por iniciar projectos que não existiam antes. Uma parte do meu trabalho tem a ver com os projectos que crio, outra com a resposta às encomendas que me são feitas.

Essa postura de criar projectos de raiz é invulgar ou há muita gente na Alemanha que o faça?
Há sempre algumas pessoas que iniciam projectos, outros fazem da sua obra o projecto, sem envolver outras músicas. Aquela postura que eu conhecia de Portugal, em que o compositor se senta à espera que o director da filarmonia da capital venha ter com ele e lhe peça uma obra fantástica, essa atitude não é aquela de que partilho. Penso que isso, se calhar, tem a ver também com a forma de estar na música e na sociedade, de que falámos há pouco. É importante que as ideias novas dos músicos, dos compositores, das pessoas do meio musical, cheguem aos produtores e que existam possibilidades de propor ideias e novas formas de ouvir música.

Existem programas específicos para que os compositores possam fazer essa proposta? De que forma tem posto em prática a criação de projectos novos?
Não tenho desenvolvido tanto essa actividade porque, como divido o meu trabalho entre o ensino e a composição, raramente tenho possibilidade de o fazer. Mas há uns anos iniciei o projecto “Private music”. Uma das peças deste projecto é a “Caffeine”, que foi agora gravada em CD, mas que só será estreada em concerto no próximo ano. Para este projecto, três compositores escreveram uma peça que consiste numa reflexão musical sobre a esferea privada.

Quem são os outros dois compositores?
Johannes Kreidler e Matthew Shlomowitz.

Como surgiu o projecto “Private Music”?
Contactei o asamisimasa, um agrupamento norueguês baseado em Oslo, que tem feito muito trabalho na música contemporânea. Havia algum tempo que queríamos trabalhar juntos.

Propôs a ideia ao agrupamento e contactou os outros compositores?
Contactei o asamisimasa com a ideia e trabalhámos junto no projecto. A escolha dos compositores também tem a ver com esse trabalho conjunto.

Em que consiste?
O projecto consiste exactamente num concerto em que três compositores escrevem uma música em que a esfera privada é de alguma forma tratada musicalmente. Existe também uma ideia mais abrangente em que a esfera privada e a sua relação com a música serão debatidas com um filósofo, sociólogo ou crítico… alguém que discuta estes aspectos com os três compositores. Portanto, a forma é mais ou menos aberta, mas existe uma mesa redonda, possivelmente, em que as pessoas debatem a forma como a música pode exprimir a esfera privada.  

Então, esse projecto será apresentado numa sala de concertos em que, para além de se ouvir três obras, há alguém a discutir com os compositores o conceito de esfera privada.
Exacto.

Este é um dos seus projectos mais recentes. Acredita que seria possível fazer em Portugal o tipo de trabalho que tem feito na Alemanha?
Curiosamente, tenho trabalhado com muitos músicos portugueses, portanto, se a pergunta é se o meu trabalho é exequível em Portugal, é claro que sim. Existem palcos, músicos de excelente qualidade… Se eu teria esta ideia se estivesse em Portugal ou não… penso que sim.

Como obteve financiamento para concretizar este projecto com o asamisimasa?
Uma parte na Noruega, outra na Alemanha. Mas o projecto não está acabado; pode ser que ainda existam outras possibilidades em Portugal.

LuisPenaNacarato2015

Qual seria o “clique” para voltar para Portugal?
Bom, aquilo que talvez me faça ir para Portugal será a possibilidade de continuar o trabalho de composição- coisa que tanto acontece aqui como na China. E, essencialmente, ter a possibilidade de criar algo de novo. O quê, exactamente, não sei. Às vezes perguntam-me de que música é que eu gosto, por exemplo. Essa pergunta é sempre muito difícil, porque há uma série de músicas e de compositores que eu ouço desde sempre, mas, essencialmente, o que me interessa é sempre música que me surpreenda de alguma forma. Isso vai sendo cada vez mais difícil, mas eu estou sempre à procura de ouvir música nova, que não conheça e que me desperte a atenção para alguma coisa que eu não tenha ouvido. Nesse sentido, por exemplo, trabalhar com os alunos pode ser extremamente gratificante, porque há sempre um fluxo a circular entre o professor e o aluno- não é só o fluxo de mestre para o aluno, mas sim uma troca de informação, digamos, entre uma atitude naïf mas energética e também com nova informação, porque cada pessoa traz sempre coisas novas e… uma outra percepção do contemporâneo, que é aquilo que o professor traz.

Mas o que é que poderia, então, fazer esse “clique”? Seria um convite para dar aulas em Portugal? Estava a falar de um projecto novo, mas acabou por só falar de aulas…
Eu considero todos os projectos e propostas que recebo. Agora não posso dizer que, se alguém me convidar, venho logo.

Falou do compositor que ficava sentado à espera que a encomenda da sinfónica chegasse. Acredita mesmo que é assim que funciona em Portugal? Primeiro: será que, de facto, mesmo os compositores que eventualmente gostam de passar a imagem de que só trabalham por encomenda ficam sentados à espera que a encomenda chegue? Segundo: acredita que os compositores continuam a só trabalhar se tiverem encomenda? Mesmo no tempo em que vivia em Portugal seria maioritariamente assim que as coisas funcionavam?
Não quero entrar em estatísticas. A minha percepção era a de que o compositor era aquela pessoa intocável que aguarda que o director artístico da sinfónica venha ter com ele, pedir uma obra de 75 minutos… Essa foi a ideia que sempre tive. Era isso que era também transmitido no ensino. Na escola aprende-se a trabalhar com música, com as notas, com as harmonias, com os ritmos, e quando se chega à vida de compositor, percebemos que isso não é tudo.

E na Alemanha isso é diferente, em termos de ensino?
Não, é igual.

Esses compositores que ficavam sentados à espera não seriam as gerações anteriores à nossa? Será que os compositores da nossa geração, e mais novos, continuam a ter a mesma postura, em Portugal?
Talvez não. É verdade.

Além do “Private music”, que projectos tem agora em mãos?
Acabei agora uma fase muito intensa em que estive três ou quatro anos sempre a compor muitas peças. Neste momento quero compor de maneira diferente e experimentar outras coisas. Tenho outros projectos, alguns dos quais podem realizar-se. Eu próprio, em música, quero aprender outras coisas agora. Para mim é sempre importante ter um impulso novo, que me leve a pensar a música de maneira diferente. Neste sentido, por exemplo, estando eu ligado à música por computador, estou neste momento a construir um sintetizador analógico que me permite uma outra atitude na música, tocando directamente nos módulos, nos botões… Estou, portanto, à procura dum instrumento musical que me permita este caminho directo para o som…

Directo- em performance, em tempo real?
Não é isso. Num sintetizador analógico modular, cada um dos módulos tem uma função muito clara e específica: não pode fazer mais do que aquilo. Portanto, a maneira de pensar é completamente diferente do que se faz na música por computador, em que se tem um elemento pequeno e se começa a crescer a partir dali, a construir… No sintetizador analógico, temos elementos com funções específicas e, através da combinação destes elementos, podemos começar a trabalhar de maneira diferente, estimulando a nossa fantasia…

Mas o que faz com o sintetizador modular pode fazê-lo num computador, modificando apenas um parâmetro de cada vez.
Claro, mas a questão não pode ser colocada assim. Com os programas hoje disponíveis e a velocidade de que os computadores hoje dispõem, tudo é possível. Posso trabalhar assim com um computador, mas não é assim que se trabalha porque o próprio método de criar som nos leva por um caminho diferente. É muito fácil um computador criar mil osciladores sinusoidais, algo que nos analógicos é impossível.

É a velocidade de resposta do computador que condiciona a forma de pensar? O facto de ter que se esperar mais tempo pela resposta, ou de as possibilidades serem mais restritas num sintetizador analógico…?
Sim. Não tenho dúvida nenhuma de que o instrumento e a velocidade condicionam sempre a maneira de pensar e a maneira de fazer música.

E é por esse motivo que vai usar um sintetizador analógico?
Não é bem. Hoje quase não existimos sem computador. Ligamo-lo, podemos fazer música, consultar o correio electrónico, ver filmes, tudo! Esta ideia de trabalhar com um sintetizador analógico que só serve para fazer som e que tem um botão para ligar e desligar e, a partir do momento em que liga, está lá tudo disponível… A necessidade de ligar os módulos uns aos outros, com cabos reais, acedendo ao aspecto táctil do processo, é completamente diferente: leva-nos a fazer uma outra música, a percepcionar as mudanças de som duma maneira completamente diferente da de um computador. Às vezes é preciso dar um passo atrás… É como ter um “smartphone” que dá para fazer tudo e depois dizer “agora tenho um telemóvel que só recebe e faz chamadas”. Há uma outra maneira de pensar para criar som nos sintetizadores analógicos que, embora seja possível no digital, não acontece porque não é esse o modo de trabalhar no digital.

Na prática, como vai utilizar o sintetizador?
Tenho várias ideias de como realizar este processo, mas não quero falar muito antes de as realizar. Comecei há muito tempo a trabalhar com uma ideia a que chamo de análise electrónica e ressíntese instrumental. É neste contexto que pretendo também usar o sintetizador analógico, como parte duma fonte de material que me leva a chegar a outros resultados.

Vai usá-lo também em concertos?
Sim. Com o Ruído Vermelho uso este sintetizador analógico.

Ligando e desligando cabos no momento?
Sim.

RuidoVermelho

Como é que surgiu o Ruído Vermelho?
Em 2010, fizemos o I-X-Herculean no ZKM (Karlsruhe), um projecto transdisciplinar, com dança, encenação, música instrumental e electrónica. Foi no âmbito desse projecto que surgiu a ideia de tornar esta actividade mais regular, criando um trio com os músicos envolvidos no I-X-Herculean. Esse projecto tinha uma forte componente de improvisação e, quando começámos a tocar os três juntos, começámos a sentir uma empatia muito grande entre os três. Percebemos que o conjunto teria potencial para desenvolver um projecto puramente musical, que foi o que aconteceu. Improvisámos imenso, gravámos imenso material e pensámos que devíamos continuar o trabalho aí iniciado, a partir da improvisação. Depois passámos a tocar algumas peças de repertório- não muitas, porque a essência do trio vem da improvisação. Actualmente pensamos abrir mais para o repertório da música escrita; também há poucas peças escritas para este trio, por isso é algo que vamos desenvolvendo.

Quantos projectos fizeram já em conjunto?
Não muitos. A dificuldade do trio reside no facto de vivermos em três países diferentes: a organização é um bocado complicada. Mas houve uma altura em que conseguimos trabalhar regularmente, de seis em seis meses ou de ano a ano. Tocámos uma ou duas vezes em Bamberg, também em Colónia, no âmbito de um outro projecto de electrónica e improvisação com mais músicos, estivemos na Suécia, num festival, com um concerto e um workshop com o Luca Francesconi e os seus alunos… E tivemos outros projectos como trio, mas em duo temos tocado muitas vezes.

Percussão e electrónica, violoncelo e electrónica?
Sim, mas também o Nuno [Aroso] e o Francesco [Dillon], por exemplo, na Villa Romana, em Florença… O projecto I-X-Herculean foi a semente para vários outros projectos musicais que foram acontecendo.  

E foi o Luís que juntou esses dois músicos.
Exacto.

Como escolhem o repertório?
A essência do Ruído Vermelho é a improvisação, que faz sempre parte dos nossos concertos. As outras peças foram surgindo de combinações possíveis. Já tocámos uma peça da Carola Bauckholt- “Geräuche” para dois músicos com pequenos instrumentos de percussão-, temos um trio do Casper Johannes Walter, que é exactamente para esta formação…

Feito para vocês?
Não foi feito para nós, mas temos realmente a ideia de iniciar um novo projecto com encomendas para esta formação.

Na vossa primeira visita a Portugal, trazem agora uma improvisação de 15 a 20 minutos. Porque é que não fazem um concerto unicamente com improvisação?
Não somos músicos exactamente oriundos do domínio da improvisação. O Francesco toca violoncelo, digamos, clássico e contemporâneo, o Nuno também tem formação clássica e contemporânea e, portanto, a improvisação não é o elemento…

Mas nasce tudo da improvisação…
Nasce, mas nunca quisemos fazer um concerto só com improvisação. Isso nunca esteve em discussão. A música escrita também tem grande importância para nós.

Planeiam fazer encomendas e têm já algum projecto marcado?
Não, o próximo projecto que temos é o de pôr em suporte fixo aquilo que temos de improvisação. Queremos fazer uma gravação nos próximos meses, o que, provavelmente, acontecerá em Bolonha, mas ainda não temos datas.

Caffeine

Sobre o disco Caffeine, lançado em Fevereiro pela Wergo, para quando está prevista a estreia da obra que empresta o título ao disco?
Há um concerto marcado para Maio de 2017, em Donaueschingen, mas não sei se será a estreia, dado que ainda falta mais de um ano.

A Caffeine é a obra que desloca o sentido de intimidade…
Sim, quer dizer, o uso não consciente da tecnologia leva a que eventualmente exponhamos aspectos que, doutra forma, não exporíamos. Este é o caso dramático do que o telemóvel pode fazer. Esta mistura entre esfera privada e esfera pública dissolve-se e parece que a esfera privada também fica modulada através da esfera pública.

Isso não diz muito em relação à música propriamente dita, certo?
Não é bem assim. Não quer, certamente, que fale de técnica de composição. É que se é isso, não, não diz nada sobre a música. Mas diz muito sobre a música, sobre o processo, a génese da peça, não é? Como é que uma pessoa chega à ideia de escrever alguma coisa…

O que me parece extraordinário é vê-lo contrariar o Luís Pena de há vinte anos exactamente com a mesma força com que bania completamente qualquer discurso que não abordasse um conceito acústico, com notas, ritmo…
Mas o Grisey também!

Também o quê?
Também mudou completamente o seu discurso.

Depois de morrer?
Não, pois… Uma pessoa vai mudando.

Pois, mas é um aspecto engraçado. E daí também ser uma surpresa ouvir aquelas notinhas que quase parecem acordes de sétima.
Em que peça?

Creio que numa peça com vibrafone…
Man on carpet… Sim, há lá um ou dois acordes que são assim, lindos…

Não estou a dizer que são lindos ou que são feios.
Não, mas é que são lindos porque não são tonais. Se é disso que está a falar, para mim não existe nenhuma intenção de regressar a esse tipo de beleza.

Não digo que haja, mas só a integração já é uma surpresa!
Mas a minha peça Trajectórias, por exemplo, tinha lá acordes… só que provinham de espectros, não é? E outras antes também tinham… a primeira peça das Jornadas também tinha lá uns acordes…

Rumos, Caminhos, Direcções.
…Até eu já esquecera do título. Tinha lá as duas oitavas… Bom, não concordo com essa observação. Mas se é da Man on carpet que está a falar, os acordes…

Os Três quadros sobre pedra não têm também uns acordes assim?
Não, a afinação das pedras é que é quase pentatónica.

Mas são afinadas segundo o sistema…
…Segundo as pedras que o Nuno arranjou.

Não deve ter sido assim, porque não foram escolhidas por acaso…
Sim, não foram escolhidas por acaso, mas não é muito fácil mudar a afinação das pedras. Quer dizer, ele trouxe aquelas e foi com elas que trabalhámos.

Essa obra interessa-me particularmente. Que história pode contar sobre ela?
Tem uma história interessante e, para mim, representa uma mudança na minha forma de trabalhar que não foi um passo consciente, nem a reconheci logo, mas aconteceu mesmo. Há momentos da criação em que a música “pop” está muito mais avançada do que a música tradicional de vanguarda, digamos assim,  e penso que saber utilizar as ferramentas de um estúdio é um aspecto importante. O Nuno veio a Karlsrühe e ficámos fechados no estúdio uma semana inteira a produzir a peça, com um modo de produção completamente diferente. Não foi o compositor fechado em casa, sozinho, a produzir uma partitura… Fomos fazendo os dois, numa produção colaborativa, em que o intérprete não está no fim da cadeia de produção, sendo antes alguém que cria juntamente com o compositor. Foi exactamente isso que aconteceu. Primeiro fomos descobrindo o som das pedras, como duas crianças a descobrir um instrumento novo. Depois fomos tentando descobrir como é que este novo instrumento podia ser tocado, ou como é que fazia sentido associar o modo de tocar com uma estrutura musical que fizesse sentido para nós. Foi esse o trabalho de pesquisa que estivemos a fazer durante essa semana.

…E resulta numa peça muito subtil. Já a “Caffeine” tem uma imensa energia.
Como disse, o tema da peça é a “esfera privada”. Por essa altura, andava a ler um livro fantástico do jornalista francês Philippe Bartherotte, La Tentation d’une Île, sobre “reality shows”. Andava a interessar-me a ideia da manipulação dos media. Então, comecei a investigar no youtube e percebi que existem mesmo cenas de sexo nos reality shows. Há reality shows em que todos dormem no mesmo quarto, numa mesma cama gigante, redonda, com vários cobertores, sempre com a câmara! E a selecção das pessoas que entram nestes programas é muito criteriosa, no sentido de encontrar as pessoas que estão dispostas a expor-se assim, para os seus quinze minutos de fama. Nessa parte final, quando aparecem os acordes, ouve-se “citações”, digamos assim.

Que projectos de composição vêm a seguir?
Vou começar a escrever uma peça para orquestra, com dois solistas de percussão.

Para 2018?
Não, para Março de 2017. Pelo meio, tenho outro projecto com a bailarina Jana Griess.

…No seguimento do outro que apresentaram no ano passado em Lisboa, com as placas metálicas a servir de instrumento?
Sim, fizemos agora outro projecto para fazer com um outro instrumento, mas o mesmo tipo de combinação…

…Mas, já se sabe, não quer falar muito antes de a realizar…

entrevista realizada em Março de 2016, por Diana Ferreira