A música faz, desde sempre, parte do cenário em que a sua vida decorre. Em casa dos pais, Nuria Schönberg Nono (Barcelona, 1932) percebeu que o seu caminho não passaria por uma carreira de intérprete, nem de compositora. Com Luigi Nono, permaneceu associada ao mundo da criação musical e da partilha. A sua ligação ao mundo tem funcionado, ao longo dos anos, como desmistificadora ponte para a arte musical.
Por ocasião da estreia britânica de Prometeo – tragedia dell’ascolto, que, em Maio de 2008, encerrou o festival Luigi Nono: Fragments of Venice (no Southbank Centre), a Arte no Tempo conversou com a fundadora do Archivio Luigi Nono.
A edição de 2013 do Música & Revolução, da Casa da Música, levou-nos a abrir o arquivo e trazer a público esta conversa.
[AnT] Quando nasceu, os seus pais estavam em Barcelona. Tem alguma relação especial com Espanha?
[NSN] Bem, eu gosto de Espanha, mas não tenho verdadeiramente uma ligação com o país. Só lá estive cerca de seis semanas quando nasci, portanto nem aprendi a língua…
…Portanto, nunca regressou…
Só lá voltei muito mais tarde, em visita. Fui a Espanha quando se fez Moses und Aron (a ópera do meu pai) no Liceu [Teatro Liceu de Barcelona]. Mas eu gosto sempre de ir a Espanha. Tivemos lá a nossa exposição sobre Schönberg em diversas cidades …e eu gosto de Espanha, mas não creio que isso esteja minimamente relacionado com o facto de lá ter nascido! [risos]
Como é ser-se americana, nascida em Espanha, com origens austríacas, vivendo-se em Veneza?
[risos] Não sei! Estou em Veneza há mais de cinquenta anos, passei lá mais de dois terços da minha vida, portanto. Eu pertenço onde estão os meus amigos, pertenço onde posso trabalhar, onde algo estimulante está a acontecer. Não sinto nenhuma pertença especial em relação a nenhum país em particular.
Quanto tempo viveu nos Estados Unidos antes de se mudar para Veneza?
Vinte e três anos.
Costuma visitar os Estados Unidos com frequência?
Tenho lá imensos familiares. Tenho irmãos, que têm filhos, que têm filhos…, portanto tenho lá uma grande família, sim.
Como foi o seu primeiro contacto com a música? Creio que através do seu pai…
Provavelmente muita gente ficaria surpreendida com a pouca música que nós ouvíamos em crianças, porque em Los Angeles, nos anos trinta e quarenta, não havia grande vida cultural, excepto no que toca ao cinema; portanto nós não íamos a muitos concertos e o que eu ouvia eram geralmente apenas concertos especiais – muito poucos, mas muito especiais -, de música contemporânea dessa época.
Não costumava ouvir música em casa?
Ouvíamos rádio. Havia um óptimo programa de rádio entre as 20:00 e as 22:00, todas as noites, que passava música clássica, e nós ouvíamo-lo com regularidade. Também não havia por aí muitos discos e os que havia eram muito caros, pelo que nós nem sequer tínhamos muitos.
Ouvia música contemporânea da mesma forma que ouvia “clássica”, desde que começou a ouvir música?
Sim.
Costumava fazer música com o seu pai?
Bom, o meu pai sempre disse que nós os três (eu tenho dois irmãos mais novos) éramos “wunderkinder” [meninos prodígio], porque todos nós desistimos da música muito cedo [risos]. Nós gostávamos de música, mas nenhum de nós era assim muito talentoso e, felizmente, todos o reconhecemos. Também éramos preguiçosos e não queríamos estudar.
…Mas estudou algum instrumento?
Sim, estudei um pouco de violino, um pouco de piano, mas sem grande sucesso.
Portanto nunca pensou seguir uma carreira…
Não, isso era absolutamente impensável.
Estudou Biologia, não foi?
Sim.
Mais tarde, como conheceu Luigi Nono?
Conheci-o em Hamburgo, na primeira apresentação de Moses und Aron, três anos depois do meu pai ter falecido. Havia um concerto em que Herman Scherchen contava dirigir a obra, porque ele havia sempre incentivado o meu pai a acabá-la, o que acabou por não acontecer. Scherchen escrevera a obra a partir da particella, da pequena partitura que o meu pai tinha deixado. E o meu marido estava a estudar com Scherchen e ajudou-o a extrair as partes para esta realização em Hamburgo. Ele foi lá ouvir a obra e eu fui lá com a minha mãe (pela primeira vez novamente na Europa depois da guerra). Lá conhecemos Luigi Nono.
Depois de casada, qual era a sua maior ocupação? …Para além de ser mãe…
Bom, a maior parte do tempo… ser mulher de um compositor é praticametne um trabalho a tempo inteiro, sobretudo em Veneza, porque as pessoas vinham a Veneza e a nossa casa estava sempre aberta a colegas do meu marido. Às vezes, orquestras inteiras apareciam para almoçar. E durante a Biennale – a Biennale de Música era muito importante naqueles tempos: as pessoas vinham de todos os cantos do mundo para ouvir a nova música – tínhamos sempre imensas pessoas que ficavam connosco. E, claro, como mãe de duas crianças, não me sobrava muito tempo. Costumava fazer algumas traduções e trabalhar um pedaço na correcção de transcrições e em traduções dos escritos do meu pai. Desenvolvi sempre algum trabalho paralelo, mas nada oficial.
Em 1993, com duas filhas crescidas, como decidiu criar o Arquivo [Fondazione Archivio Luigi Nono]?
Trabalhei no Arquivo de Los Angeles [Instituto Arnold Schönberg na USC] desde os finais do anos oitenta até 1991, quando publiquei uma grande fotobiografia do meu pai. Consequentemente, eu sabia como funcionam os arquivos e tinha imensa experiência na matéria. Quando ele [Luigi Nono] faleceu, senti que devia fazer o mesmo com o seu arquivo e contei com a ajuda de alguns musicólogos que estavam a estudar a sua obra e que queriam consultar os manuscritos. E pareceu que o ideal seria organizar tudo tal como estavam organizadas as coisas do meu pai, em Los Angeles.
Alguma vez Luigi Nono mostrou interesse em criar um arquivo com os seus escritos e livros?
Não exactamente. Ele manteve sempre os seus esboços de pré-composição e projectos e sabia que as pessoas teriam interesse em consultá-los, portanto creio que ficaria satisfeito.
Pode falar-nos um pouco sobre o Arquivo e os seus objectivos?
Tal como disse, abrimos em 1993. Trouxemos todo o seu espólio – e estamos a falar de treze mil volumes da sua biblioteca pessoal, vinte e sete mil páginas de esboços das suas obras e milhares de páginas de escritos e de correspondência – e o que mais nos ocupou inicialmente foi catalogar todos estes documentos (e já catalogámos praticamente tudo). Fizemos cópias a cores, em máquinas a laser, de todos os esboços, de modo a que possam estar disponíveis para qualquer pessoa que estejqa interessada em consultá-los (não apenas musicólogos, mas quaisquer músicos ou melómanos, qualquer pessoa). A biblioteca, especialmente, tem sido uma surpresa para nós: desde que colocámos todos os catálogos na internet, temos recebido pessoas que, por vezes, nem sequer têm qualquer relação com a música, porque a biblioteca do meu marido tem livros fantásticos, alguns dos quais muito raros e difíceis de encontrar. Por isso recebemos gente das mais diversas áreas – literatura, filosofia, arquitectura, as mais variadas linguagens – para consultar exemplares da sua biblioteca. E, claro, temos muitos jovens que estão a escrever dissertações sobre as obras de Nono que vêm lá trabalhar. Alguns vêm por longos períodos, por vezes mesmo por seis meses… Outros preparam-se na internet, sabendo exactamente quais os esboços e outros materiais que temos no Arquivo, de modo a poder chegar e dizer “quero ver isto, isto e aquilo…”. Também temos um conjunto de pelo menos cem vídeos – biográficos e registos de interpretações – e centenas de CDs que não são apenas registos de interpretações (alguns históricos, não-comerciais), sendo muitos deles o correspondente ao que os esboços em papel representam para as obras escritas em partituras tradicionais: são os trabalhos preparatórios para a música electrónica, permitindo seguir-se integralmente a genése de uma obra electrónica, tal como foi feita em estúdio. Por exemplo, para …Sofferte onde serene… temos todas as fitas – agora digitalizadas – com o Pollini ao piano a tocar apenas notas isoladas, que o meu marido usou para desenvolver a parte electrónica (fita) da obra [para piano e electrónica], portanto consegue-se mesmo ouvir como é que tudo foi composto… É muito interessante.
Costuma prestar muito atenção aos jovens intérpretes e compositores dos nossos dias?
Pessoalmente interesso-me bastante por saber o que anda a ser feito. Seria uma loucura isolarmo-nos e não pretendemos ser esse género de instituição. Incentivamos as pessoas a enviar-nos as suas fitas e CDs, ou qualquer que seja o suporte com que trabalham; mas não há assim muitos concertos em Veneza que se possa ouvir. Nós estamos todos, naturalmente, interessados no que se passa no resto do mundo. Outra actividade que desenvolvemos (que não tem nada a ver com isto): quatro vezes por ano temos aquilo a que chamamos “Incontri”, encontros com o público em que se conversa sobre a obra de Nono – por vezes sobre uma obra específica ou sobre um aspecto específico da sua obra –, para um público geral ou leigo. Comecei esta actividade porque os jovens musicólogos estudavam determinada obra tão profundamente, tão bem, conhecendo tudo acerca dela, e depois escreviam extraordinárias dissertações que ninguém chegava a ler. O seu trabalho nunca chegava até ao público ou aos músicos. Portanto, decidi propor-lhes, no final da investigação, que apresentassem todas estas coisas muito complicadas numa forma muito simples, para um público “normal”, e isso resulta muito bem. Temos uma simpática audiência muito heterogénea, com turistas, musicólogos, estudantes e as mais diversas pessoas; geralmente passamos uma gravação histórica ou um vídeo, se tivermos algum que mostre como algo era tocado no tempo de Nono.
Há alguns compositores ou intérpretes que admire particularmente?
Não creio que possa mencionar nomes. Naturalmente, os intérpretes que trabalharam com o Gigi [Luigi Nono] eram extraordinários. E neste espectáculo do Prometeo [Londres – Southbank Centre: Fragments of Venice] temos a grande sorte de ter Roberto Fabbriciani, que trabalhou com o meu marido nos últimos dez anos da sua vida, daí resultando um maravilhoso trabalho conjunto. Fabbriciani desenvolveu a técnica que permitiu ao meu marido realizar os seus projectos. E, claro, o Experimental Studio de Friburgo foi qualquer coisa de extraordinário para o meu marido, porque lá ele pôde realizar os projectos que tinha imaginado – ele chegava lá e dizia “não seria óptimo se pudéssemos…?” e na próxima vez que lá fosse eles já teriam desenvolvido novo equipamento que o permitisse. E o André Richard é um fantástico intérprete destas obras.
Para além do Arquivo, quais são as principais actividades que gosta de desenvolver?
Sou também Presidente do Centro Schönberg, em Viena, que é enorme, e fiz várias exposições sobre o meu pai e sobre Nono. Temos várias exposições itinerantes.
Uma esteve em Lisboa há alguns anos… [1995]
Sim, na Fundação Calouste Gulbenkian. Essa exposição já esteve em 55 locais diferentes e está agora no Canadá, mas há uma nova exposição em Viena, no Centro Schönberg, da qual se pode ver um vídeo no YouTube. [Video 1] [Video 2]
Que espaço sobra para as outras artes, já que tem vivido sempre rodeada de música?
Muito para a pintura, pintura moderna… Tive contacto com a pintura desde criança e interesso-me muito por essa área. O meu marido era muito próximo duma série de pintores – Vedova, Burri, em Itália e, claro, todos os grandes eram inspiradores para ele. Também conhecíamos o pai de Diego Masson [maestro da estreia britânica de Prometeo], André Masson, que também dedicou alguns belíssimos esboços ao meu marido, desenhos muito bonitos… Sim, interesso-me muito por arte, mas não faço nada. Apenas vou a exposições! [risos]
De certo modo, já respondeu a esta pergunta, mas com que regularidade assiste a concertos?
Actualmente, tento ir a eventos importantes relacionados com Schönberg ou Nono. Estou aqui para este [Prometeo…] e, sempre que posso, vou a eventos maiores, pois é sempre uma óptima oportunidade de ouvir as suas obras. E quanto mais se ouve, mais se aprecia! Em Veneza, durante a Biennale, há concertos de música contemporânea e eu tento ouvir o máximo que posso, de modo a estar informada sobre o que se passa.
Está atenta ao mercado discográfico e às tendências da indústria discográfica?
Não muito… É muito difícil. Veneza não é um lugar onde haja discotecas muito boas. Por outro lado, enviam-me muitas coisas, recebo muitos CDs e, como é natural, eu ouço-os. Não sou especialista, não posso dizer às pessoas se o que me enviam é extraordinário ou não, mas tento, pelo menos, ouvir os seus trabalhos e responder-lhes, …sem um parecer técnico, porque isso não posso.
Há outros familiares envolvidos no Arquivo?
Estão envolvidos na medida em que fazem parte do Conselho de Fundadores e, portanto, discutimos quaisquer mudanças ou questões importantes. Se organizamos alguma coisa, costumo discuti-lo com as minhas filhas, mas elas têm as suas vidas… Serena é pintora e Silvia vive em Roma, trabalha para uma empresa que faz audio-books em italiano …e tem um filho. Elas já têm muito com que se preocupar.
Sente que ainda falta alguma coisa no Arquivo?
Há sempre imenso por fazer!
…Mas algo em particular?
Estamos a tentar reunir cartas que Nono escreveu a outras pessoas. Também fazemos entrevistas em vídeo a pessoas que o conheciam e estamos a desenvolver um bom arquivo de entrevistas, o que é extremamente importante, especialmente no que toca a técnicas de execução, e este é um dos nossos principais interesses, de momento. Também promovemos cursos de interpretação praticamente todos os anos e congressos sobre diferentes temáticas – o próximo será sobre a dramaturgia do som na música de Nono, não apenas nas três obras que são consideradas óperas, mas também no uso que faz do espaço noutras obras. Será um congresso muito interessante, para o qual acabaram de ser publicados os anúncios. No nosso site encontra-se toda a informação disponível, tudo sobre como chegar ao Arquivo, o horário, etc.
Quão diferente poderia a sua vida ser se não fosse filha de um compositor que mudou o curso da música e depois casada com outro compositor igualmente importante, se é que é possível sabê-lo?
É difícil saber. Poderia ter sido uma boa médica, que era o que eu queria ser! [risos]
Sobre Prometeo… É uma obra intimamente relacionada com o espaço. Acha que isso se deve às raízes venezianas de Nono?
Definitivamente, sim. A Basílica de S. Marcos em Veneza foi, desde o alvorecer da sua criatividade, uma enorme influência – a ideia de que a música deve vir de todas as direcções, connosco no centro, e não de uma única fonte. Temos alguns filmes muito bons em que ele explica este género de questões sobre como é que, em Veneza, quando passeamos, ouvimos tantas coisas provindas de pontos diferentes, e ele acredita que nós temos a capacidade de ouvir todos esses estímulos, mas que essa capacidade está inibida e nós temos que a desenvolver. E há também todos os sinos das torres em Veneza e, como não há trânsito, não há carros, em determinados momentos do dia podemos ouvir todos os sinos das diferentes torres a soar. Tem muito a ver com a audição de eventos sonoros simultâneos e ele sempre se interessou muito por este tipo de audição ou espacialização.
Quanto é que cada execução pode variar das restantes?
Elas diferem de acordo com a acústica e com a forma do espaço em que decorrem; a obra tem que ser adaptada ao espaço. Já deu para ver, aqui nos ensaios [no Royal Festival Hall] que este espaço é completamente diferente de qualquer outro onde a peça foi anteriormente apresentada. A localização dos instrumentistas é diferente e, com a electrónica, o som viaja por toda a sala, pelo que a localização dos altifalantes também tem que se adaptar ao local. É como som surround – o som vem de todas as direcções – por isso praticamente tudo tem que ser re-planeado em cada novo espaço, para que a peça tenha o efeito que se pretende. É diferente de local para local. Na estreia da obra – na igreja de S. Lorenzo com a arca de Renzo Piano – a igreja estava dividida em duas partes; havia um altar gigante no centro e, se estivesse sentado num lado num dos dias, e no outro lado noutro dia, ouviria praticamente uma obra diferente. Mas isso é tudo parte da obra e suponho que ainda a torne mais interessante!
Existe um espaço ideal para esta obra?
Não sei… Estávamos a falar sobre isto ontem, porque eu disse ao André Richard que a obra soava diferente do que eu me recordava da estreia e ele disse que, por causa da estrutura de madeira de Renzo Piano, havia uma certa ressonância que é, naturalmente, diferente numa outra sala; portanto, esse pode ter sido o espaço ideal, mas não necessariamente, porque creio que a ideia do meu marido era também que fosse possível fazer a obra soar diferente em cada lugar e, claro, isso depende também muito do “sound designer”. É preciso conhecer-se profundamente a obra e conhecer bem o… eu estou tentada a dizer o estilo, porque noutros tipos de música diz-se “o estilo de Bach” ou “o estilo de Mozart”, e eu acho que isso também se aplica à música contemporânea – um intérprete deve saber como é que o compositor queria que a peça fosse tocada e ouvida. Esta é uma das razões pelas quais fazemos os cursos de interpretação, porque importa muito como se canta, como se toca flauta ou qualquer outro instrumento. E o mesmo se aplica à electrónica… É muito interessante porque já muitos anos decorreram desde que muitos destes trabalhos foram escritos e a tecnologia evoluiu muito. Os altifalantes são hoje muito melhores e o que acontece é que, por exemplo, quando ouvimos La Fabrica Illuminata – nós que a ouvimos no tempo do meu marido – dizemos: “Isto é muito suave, muito macio, isto era muito mais forte”. Mas parece que isso não é possível porque os altifalantes do tempo do meu marido (dos anos 60 e 70) não podiam tocar tão alto como os de agora, só que os de agora não distorcem o som e parece que, como na altura se atingia o ponto de distorção daqueles altifalantes, era isso que fazia a peça soar tão insuportável [no sentido físico]. Hoje, quando se toca esta mesma peça (por vezes até mais alto) não nos incomoda de todo. Há algo que falta, o que é muito interessante, porque na altura atingia-se o limiar da dor e hoje em dia aquilo simplesmente é agradável! [risos] É um problema interessante e nós teremos, mais cedo ou mais tarde, um simpósio sobre esta questão, com pessoas que trabalham em acústica, porque as peças já não são as mesmas… E portanto, o que fazer? Repõe-se a distorção artificialmente? Ou deduzimos que, tal como o piano do tempo de Beethoven não é igual a um piano moderno, o mesmo acontece com os altifalantes? É um problema interessante. Claro que ainda há o lado lírico de Nono que sempre lá esteve e que …
…Ainda lá está.
Sim.
Lachenmann descreveu esta obra como um gigante madrigal. Até que ponto concorda com ele?
Bem, talvez… Talvez ele esteja a pensar na polifonia – muitas coisas a acontecer ao mesmo tempo – e o canto, por isso acho sim… Se ele o diz, deve estar certo! Eu admiro imenso Lachenmann e acho-o um compositor fantástico e um óptimo amigo, portanto qualquer coisa que ele diga eu subscrevo! [risos] Mas não sou nenhuma especialista…
Esta estreia britânica tem algum significado especial? É algo estranho que uma obra tão importante tenha demorado 25 anos a “chegar” a Londres, tendo em conta que quase tudo passa por aqui.
Bem, é uma obra muito complexa e montá-la é muito caro. Eu acho que o extraordinário sobre esta apresentação é que está a ser feita também com estudantes e com pessoas que nunca a tinham feito antes, quando na maioria das outras apresentações tinham sido utilizados, pelo menos, os solistas originais e o maravilhoso coro do Andre Richard, o Solistenchor Freiburg. Desta vez temos gente nova, o que é muito importante porque uma obra não vive se estiver atada às mesmas pessoas para sempre, simplesmente porque elas vão envelhecendo… [risos] Até um certo momento, não se imaginava que isto fosse possível, portanto creio que se trata de um passo importantíssimo!
O que espera desta apresentação?
Eles tiveram relativamente pouco tempo de ensaio porque se trata de uma obra extremamente difícil. Há tantos detalhes que têm que ser trabalhados neste novo espaço e eu reparei ontem que quase todos os compassos têm problemas que precisam de ser resolvidos! (risos) E, claro, a electrónica é em tempo real, portanto os técnicos vão trabalhando à medida que a obra vai decorrendo mas têm que saber precisamente o que é que vai acontecer e tudo tem que estar muitíssimo bem preparado. E há muita gente envolvida, é uma obra de larga escala… Tenho a certeza que será um bom concerto porque todos parecem estar muito dedicados e estar a dar mesmo o seu melhor, e penso que estão todos preparados. Espero mesmo que seja um concerto excelente e que tenha… sucesso!
Como pensa que se pode atraír uma pessoa “comum”, não habituada a ir a concertos de música erudita, para a obra de Nono, ou mesmo para a música contemporânea em geral?
A primeira coisa que tem que lhe dizer é que não é necessário “perceber” a obra, porque muita gente não “percebe” música alguma. Não percebe a música do séc. XVI, não percebe Bach ou Mozart, no sentido em que não percebe como as peças são escritas e construídas. Por isso, não se deve dizer-lhe “isto é música do tipo X ou Y”. E não façam a música soar inacessível, não digam “é uma música problemática” ou “é difícil de compreender” ou “é controversa”, tudo expressões a que os críticos e outras pessoas recorrem para descrever as peças, antes do público as ouvir. Avisam logo que não vão perceber e eu acho que, pelo contrário, deviam antes dizer: “isto é algo que basta ouvir… simplesmente estejam lá e ouçam, reparem no que vai acontecendo e relaxem!” Tem piada por ser “relaxem e prestem atenção”, o que parece contraditório mas é assim que funciona. E penso que não deveria haver nada, qualquer tipo de acção, a distrair o público, a impedi-lo de ouvir activamente a obra. E, cumpridos estes “requisitos”, penso que a maioria das pessoas acharia a música bonita, desde que não fosse influenciada por pessoas a dizerem-lhes de antemão que não vão gostar.
Por preconceitos…
Sim, preconceitos.
Faz parte dos objectivos do Arquivo atrair pessoas de outras áreas, não apenas músicos ou musicólogos?
Nós não tentamos atrair ninguém. Nós apenas pomos à disposição o que temos e as pessoas vêm, à excepção destes encontros que temos com explicações das obras, que interessam sempre às pessoas. E depois, claro, temos conferências onde acabamos por ter gente dos quatro cantos do mundo que vem com o objectivo de discutir vários assuntos em conjunto. E este intercâmbio de ideias é muito importante. Mas não fazemos promoção, isso é o trabalho das editoras e elas também não o fazem! [risos]
Para si, é diferente falar sobre a música do seu pai de falar sobre a do seu marido? Acha que o público reage melhor a algum deles em particular?
Isso é uma pergunta difícil… Uma boa parte da obra do meu pai já é tida como clássica, e as pessoas falam “daquela música dodecafónica…” Noutro dia conheci um senhor que me disse: “sabe, quando eu era jovem cantava num coro e cantámos aquele coral do seu pai que era tão difícil, aquela música dodecafónica” e era o Friede auf Erden, que é tudo menos dodecafónico, é uma obra tonal! (risos) Mas muitas das suas peças já são muito bem aceites e tocadas, por vezes de maneiras terríveis, por pessoas que acham que têm que as mudar e usar. Como o Pierrot Lunaire, com o qual toda a gente acha que tem que fazer algo diferente, tal como com as suas óperas. Mas são tocadas muitas vezes. Nós gostaríamos que as pessoas tocassem algumas destas obras como estão escritas, o que seria simpático (risos) mas isso é um problema… Torna-se um problema cada vez maior, porque a tendência é a de se fazer tudo o mais distante possível em relação ao que o compositor queria e, segundo eles, “modernizar” – e digo isto sarcasticamente porque não é de todo necessário “modernizar”… Apenas penso em tudo isto como sendo música, não me fazendo muita diferença se é do meu pai ou do meu marido. Não são verdadeiramente diferentes, para mim, porque me é natural ouvir qualquer uma delas, mas não ando por aí a promover a música deles. Eu gosto de fazer estes recitais-conferência porque conseguimos atingir pessoas que não sabem muito sobre as vidas e sobre a pessoa por detrás da música, que tem tanto a ver com a própria música, e muitas vezes, quando fazemos uma exposição ou uma palestra, as pessoas apercebem-se de repente de que há um imenso elemento humano que surge na música. As pessoas esquecem-se com frequência de que escrever música não é só matemática e técnica e que, por detrás de cada música, existe emoção e, quando se conta às pessoas a história da vida dos compositores, o que é que os se interessava, o que fizeram na sua vida, de repente as pessoas escutam a música de maneira diferente. Por isso gosto de fazer estes recitais-conferência e fazêmo-lo muitas vezes – já fizemos mais de 30 ou 40 sobre o meu marido e o meu pai (muitas mais sobre o meu pai do que sobre Nono) e o Stefan Litwin toca sempre algumas obras ao piano de modo a que as pessoas possam ouvir a música, o que faz uma grande diferença. Há pessoas que, no final, vêm falar connosco demonstrando verdadeira surpresa. As exposições também têm sido muito bem sucedidas a esse respeito, porque permitem ter-se uma ideia mais global sobre a pessoa e sobre os seus interesses e tornam mais fácil a compreensão da música. Bem, eu não gosto de dizer compreender, mas percepcionar, de…
Apreciar…
Sim, apreciar.
Recorda-se da estreia em Portugal de Prometeo?
Eu não estive lá! Acho que estava no hospital! [risos]
Conhece o panorama musical, ou artístico, português?
Não muito. De vez em quando temos tido alguns contactos, mas não sou muito boa com nomes. Mas temos sempre alguns contactos, por exemplo, com musicólogos que eram amigos do meu marido. Uma vez fizemos uma visita fantástica a Portugal, logo a seguir à revolução, quando toda a gente andava nas ruas com os cravos, e foi fantástico, muito entusiasmante! Salvo erro, ficámos pelo menos duas semanas. Conhecemos imensa gente, fomos a muitos sítios diferentes e temos gravações de alguns grupos de cantares de mineiros e discussões interessantes. Também fomos ao Porto… Somos muito amigos do Paulo de Assis, o pianista, e ele vem muitas vezes ao Arquivo Nono. Ele escreveu uma dissertação fantástica sobre …Sofferte onde serene…, um trabalho muito completo e importante, duradouro. Ele vem muitas vezes ao Arquivo e partilhamos uma grande amizade.
Essa foi a sua única visita a Portugal, depois da revolução?
Depois voltei lá para a exposição multimédia de Schönberg, na Gulbenkian, e isso foi maravilhoso porque eles têm todos os meios para tornar tudo perfeito! Por acaso foi aí que fiz o primeiro recital-conferência com o Stefan Litwin e foi por mero acaso. Eu estava a ser entrevistada e também lhe tinham pedido para tocar umas peças de Schönberg durante a entrevista e assim tivemos a ideia de fazer isto em conjunto. Foi assim o nosso primeiro encontro, na Fundação Calouste Gulbenkian! [19os Encontros Gulbenkian de Música Contemporânea, Lisboa – 1995]