Nascido em Lisboa, João Moreira (2004) foi o compositor escolhido para criar um trio de cordas para a quinta temporada do ars ad hoc, na sequência de uma chamada da Arte no Tempo [AnT]. Em menos de dois anos, o tão jovem quanto promissor compositor trilhou com voracidade um percurso singular na descoberta da música ocidental contemporânea de tradição erudita, tendo já composto um pequeno conjunto de peças de grande seriedade. É sobre o trio Atropos, que o ars ad hoc estreará em Serralves a 19 de Fevereiro (com nova apresentação em Castelo Branco, uma semana depois, mas também nos Festivais de Viseu e de Leiria, no mês de Abril) que a AnT conversa com o compositor.
[AnT] Tens 18 anos e começaste em Setembro a Licenciatura em Composição, em Londres, mas o teu percurso não corresponde ao da maioria dos jovens estudantes de composição portugueses que, nos últimos anos, têm saído dos conservatórios de música já com alguns anos de estudo. Como é que te cruzaste com a música e, em particular, com a composição?
[JM] O meu interesse pela música surgiu aos 16 anos, durante o início da pandemia. Na altura, estava a aprender guitarra através da internet e decidi tentar iniciar-me no jazz; contudo, todos os aspectos teóricos eram-me totalmente desconhecidos, por isso comecei a pesquisar e a aprender sozinho como ler música. Mais tarde, comecei a estudar com o professor David Miguel, que me apresentou à música contemporânea e me orientou até entrar no curso de composição, na Royal Academy of Music.
Para quem começou a trabalhar com música há tão pouco tempo, é curioso o interesse tão claro pela música contemporânea de tradição erudita e a capacidade de dedicação, estudo, investigação e experimentação que mostras ser prioridade no teu trabalho. Este “nicho” da música erudita foi logo o que primeiro te interessou?
Não, de todo. A música contemporânea era-me totalmente desconhecida e antes de lá chegar cruzei-me com géneros como rock, heavy-metal, jazz e música para cinema.
E enquanto público, és assíduo em concertos? Se sim, já o eras antes de começar a estudar composição?
Após ser introduzido ao mundo da música contemporânea, tornei-me bastante assíduo em concertos, nomeadamente os do Oculto da Ajuda e os do Lisboa Incomum.
As referências para que apontas quando falas do teu trabalho são bastante relevantes na música contemporânea. Como é o teu processo de pesquisa até chegar a estas obras e compositores? O que mais te interessa quando vais à procura e quando estudas a sua música?
O trabalho de compositores como Helmut Lachenmann, Raphael Cëndo e Beat Furrer são de extrema importância para a concretização das minhas peças. Descubro estes trabalhos, muitas vezes, através de contacto com músicos e outros compositores, editoras e internet.
A experimentação instrumental também faz parte do teu processo criativo? Há algum instrumento que tu próprio utilizes e explores enquanto compões?
Certamente. A experimentação instrumental é altamente importante e é sempre o primeiro passo no desenvolvimento de cada trabalho. Não me é comum a experimentação directa com um instrumento, mas sempre com instrumentistas, acompanhado sempre de uma vasta pesquisa.
Atropos é uma peça para trio de cordas que começa com um cânone entre os três instrumentos, que vão explorando materiais musicais semelhantes em conjunto, mas a dada altura o violoncelo assume um papel protagonista, a solo. O que mais nos podes dizer sobre a peça?
A peça está dividida em três secções distintas, cada uma constituída por materiais musicais contrastantes. Outro elemento de elevada importância é o uso da luz e da amplificação, resultando numa sobrecarga tanto sonora como visual, que pretende explorar os limites da percepção.
Que referências ou particularidades do processo criativo podes partilhar connosco?
O meu processo criativo é sempre muito metódico. Começo sempre por pensar na estrutura da peça e dividi-la em pequenos eventos, passando depois para a execução da partitura em papel e, por fim, no computador.
Tiveste sempre muito cuidado no teu contacto com os intérpretes, na medida em que procuraste sempre a sua opinião e comentários ao teu processo de escrita e à notação que utilizas, partilhaste referências para os efeitos e técnicas instrumentais que escreveste, etc. Em que medida esta colaboração com os intérpretes é importante no teu trabalho?
O trabalho e contacto com os interpretes é bastante importante para mim, de modo a estabelecer uma boa relação com os músicos que apresentam o meu trabalho a um público e também na criação da obra, especialmente no processo de conceptualização.
Como foi conhecer e trabalhar com estes três músicos do ars ad hoc?
Trabalhar com os músicos do ars ad hoc foi uma óptima experiência: estiveram sempre disponíveis para responder a quaisquer questões e para darem o seu feedback.
Além da escrita instrumental, a tua partitura inclui indicações para a manipulação de luzes. Um desenho de luz pré-definido, mas manipulado em tempo real, em estreita sintonia com a música que está a ser tocada em palco. Esta dimensão mais visual, ou cénica, associada à música é um tipo de trabalho que te interessa explorar no futuro?
Um dos grandes dilemas que tive durante a conceptualização da obra foram as luzes, pois sabia que poderia adicionar muito à peça, especialmente na última secção. Contudo, queria evitar que a peça fosse vista como teatral, visto que este não é um trabalho programático.
Apesar da obra ter esta iluminação anotada de forma muito precisa na partitura, permites que seja tocada sem este requisito, numa sala que não tenha condições técnicas para isso. Sendo assim, quão fundamental é a iluminação no resultado da obra?
A luz na obra tem vários propósitos: reflectir o carácter musical da peça, mostrar visualmente os pontos de destaque (nomeadamente o solo do violoncelo) e, por fim, na última secção, criar uma sensação de sobrecarga e desconforto. Contudo, não é um elemento essencial da peça, mas sim algo que pretende adicionar à performance do trabalho.
O que dirias ao público para o convidar a assistir aos concertos em Serralves e em Castelo Branco?
A Arte no Tempo e o ars ad hoc criaram um excelente programa, nomeadamente os solos e trio de Kurtág e o trio de Lachenmann. É sem dúvida, um grande orgulho ter um trabalho meu a ser estreado no meio deste programa. É um concerto a não perder.
Obrigada pelas tuas respostas.