David Teixeira da Silva (Porto, 2002) foi o jovem compositor escolhido para criar uma nova obra para o concerto que o Between Feathers ensemble dará no próximo dia 19 de Março, no Teatro Aveirense, no âmbito do projecto Tubo de Ensaio.
A concluir o Mestrado em Composição na Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo (IPP), David trabalhou, nos últimos meses, com aquele agrupamento austríaco para criar o quarteto éternelle [2025], para soprano, flauta, acordeão e percussão, a cuja estreia assistiremos em Aveiro dentro de três semanas.
[AnT] A ideia inicial para a obra que o Between Feathers estreia a 19 de Março era a de “redizer”, pegar em material musical existente em peças anteriores e reutilizá-lo de forma diferente. Em que medida esse pressuposto inicial se encontra presente na partitura criada?
[DTS] Esse foi um desafio que fiz a mim mesmo, o de escrever uma composição nova (e não um arranjo ou uma orquestração) com base numa obra pré-existente. Estou a finalizar o meu percurso no curso de composição da ESMAE e, após cinco anos de estudos, lembrei-me de que a primeira peça que o compositor Daniel Moreira me recomendou para audição, na altura em que era meu professor de composição, foi Apparition de l’Eglise éternelle, de Olivier Messiaen. É uma obra belíssima, apesar de extremamente forte e cheia de vitalidade. Creio que esse foi um ponto de partida para o que viria a acontecer nos anos seguintes na minha música, como se, de alguma forma, a ressonância daquela obra estivesse sempre presente.
Decidi então utilizar como ponto de partida a harmonia da peça, com os clássicos acordes complexos de Messiaen, mas criando uma nova linguagem para esse encadeamento harmónico. Algo de curioso na obra original é o facto do clímax ser um acorde de Dó maior, de uma simplicidade extrema no meio de todos os restantes acordes. Se Messiaen utilizou esse acorde para alcançar o momento de maior intensidade, eu uso-o para acabar a peça.
A composição de Messiaen caracteriza-se por uma força e energia muito grandes e o meu objectivo foi o de utilizar a estrutura harmónica para o seu oposto, algo muito delicado e frágil. Se na peça original (para órgão de tubos) há toda uma sensação de reverberação devido às situações acústicas das igrejas, pretendo alcançar essa mesma sensação de lonjura, mas através de ressonâncias dos diferentes instrumentos. Trata-se de fazer o meu discurso, como se fosse um texto completamente novo, mas inspirado apenas em algumas palavras de uma outra pessoa.

Como foi a experiência de trabalho com o Between Feathers?
Estes últimos meses de trabalho com o Between Feathers foram, para mim, muito positivos. Já conhecia a Beatriz Ramos da ESMAE e a sua colaboração com colegas meus, compositores. É muito bom ter este diálogo com os instrumentistas no processo composicional. O ensemble foi muito cooperante e trocou imensas ideias e excertos de gravações da obra comigo. No fundo, acabei por ir escrevendo a obra com eles. Curiosamente, nestes últimos dias tenho andado a ler acerca de ontologia relacional, a partir da obra de Martin Buber; o autor distingue claramente dois tipos de conexões: Eu-Tu e Eu-Isso; a primeira está associada a uma relação pessoal, em que algo interior aos sujeitos é alterado, enquanto que o segundo tipo de vínculo implica uma experiência superficial e impessoal. Assim, na ligação Eu-Isso, no domínio da composição, era como se o ensemble não servisse para mais nada a não ser, de uma forma utilitária, interpretar a composição, já que dele necessitava. Nos últimos projectos em que tenho vindo a trabalhar tive a sorte de vivenciar este lado relacional do Eu-Tu; nesta dinâmica, para além de ser muito mais gratificante do ponto de vista humano, também a faceta musical sai a ganhar. Infelizmente, creio que o mundo da música erudita ainda está muito vinculado a uma relação Eu-Isso: a maior parte das vezes, os músicos apenas conhecem o compositor, quando está vivo, nos ensaios (quase sempre em cima do dia do concerto), tratando-se de uma conexão superficial e bastante impessoal.
O facto de se tratar de um grupo estrangeiro e de esse trabalho colaborativo ter sido realizado à distância trouxe alguma dificuldade acrescida?
Na realidade, e ao contrário do que eu pensaria inicialmente, não. Creio que termos vivido a pandemia trouxe-nos este lado positivo de saber agilizar os processos à distância e trabalhar com novas ferramentas. O facto de o ensemble me ter enviado várias gravações foi muito útil do ponto de vista sonoro e permitiu-me ouvir várias vezes os ficheiros de áudio, apercebendo-me de pormenores significativos.

Terá o Between Feathers ensemble tido uma influência determinante na partitura resultante, ou a vossa colaboração traduziu-se mais no apoio que os músicos te prestaram no que à verificação de possibilidades dos instrumentos respeita?
Creio que a obra acabaria por ser diferente sem o trabalho com o ensemble. A colaboração foi mesmo muito útil e, como disse anteriormente, penso que o ponto de vista relacional foi determinante para o resultado final. Os músicos do ensemble terão percebido bem a ideia da obra e o próprio “feedback” que foram enviando demonstrou-o claramente. A composição está muitas vezes relacionada com o pensamento abstracto e um exercício de imaginação (“Creio que esta parte soará assim…”); contudo, ter realmente as pessoas que vão interpretar a música em concerto a fazer parte da concepção da obra conduz a abstracção para o domínio do concreto e do real.

Como enquadras esta peça no teu ainda breve percurso na composição?
Apesar de ainda ter um percurso breve, creio que esta obra se enquadra no tipo de linguagem que tenho vindo a realizar nas minhas últimas composições. Penso que muitos de nós, quando estamos a dar os primeiros passos num curso de composição, temos a tentação de experimentar muitas linguagens e técnicas, querendo fazer um pouco de tudo. Eu próprio sinto que fiz isso, mas, no último ano e meio, que curiosamente ou não coincide com o meu mestrado, tenho vindo a desenvolver uma linguagem mais própria, muito ligada a uma música verdadeiramente significativa para mim. É difícil falar da minha própria obra sem correr o risco de ser pretensioso, por isso vou apenas realçar o meu interesse por uma música mais contínua e narrativa, que não se limite ao mero efeito sonoro. Pretendo que o ouvinte sinta um fio condutor desde o início até ao fim de uma peça.
Recomendarias esta experiência a outros compositores da tua geração?
Sim, recomendaria! Colaborar com músicos deste calibre (quer o ars ad hoc, quer os ensembles convidados) é sempre muito positivo. Para além disso, trabalhar com toda a estrutura que a Arte no Tempo disponibiliza é propício à criação musical.

Que projectos criativos tens para o futuro mais próximo?
Neste momento estou a realizar a minha dissertação final para obter o grau de mestre e a concluir a composição da obra que será tocada no meu recital, em Julho. É algo que tem ocupado grande parte do meu tempo, mas tem sido muito importante nesta minha pesquisa composicional. Para além disso, no âmbito de uma bolsa de investigação do projecto Spatial Synth na ESMAE, co-financiado pela União Europeia, em parceria com a Sound Particles, tenho vindo a compor algumas obras que vão ter apresentação em breve. Depois disso, ainda tenho alguns projectos que penso começar mais para o final do ano e felizmente tenho tido oportunidades bastante aliciantes para os apresentar.
Obrigada pelas tuas respostas.