Rúben Borges (1994) foi o compositor seleccionado na chamada de peças da Arte no Tempo para o Tubo de Ensaio #08 e esteve à conversa connosco a propósito da estreia de INLand, pelo grupo Soundinitiative, que terá lugar no dia 30 de Março, no Teatro Aveirense. O compositor respondeu-nos a esta entrevista via zoom, desde Antuérpia, onde reside, no dia seguinte aos ensaios que teve em Paris com os músicos do Soundinitiative.
[AnT] A tua peça foi escrita no âmbito da chamada de peças da Arte no Tempo para o Tubo de Ensaio #08. Depois de saberes que foste seleccionado, como começou o processo de idealização da obra?
[RB] Foi um pouco longo porque, primeiro, tive a ideia dos instrumentos que ia utilizar – como o piano de brincar – mas, como sempre, há ideias que dificultam a concretização. Decidi cingir-me ao “normal”, mas tentando escapar ao tradicional. Foi por isso que acrescentei objectos do dia-a-dia, reflectindo sobre como torná-los musicais ao longo da peça, o que levou a outras dinâmicas.
A logística influenciou um pouco os instrumentos que tinhas disponíveis. E os próprios músicos, o contacto que tiveste com eles – primeiro com a direcção do ensemble e depois com os músicos – influenciou também a forma como pensaste a peça desde o início e como a foste escrevendo?
Sim, influenciou muito porque, felizmente, tive a oportunidade de conhecer a Winnie [Huang] cá, ainda no meu primeiro mestrado, e já tinha trabalhado com ela, num workshop com ela e com a Jessie Marino, em que fiquei a conhecer o trabalho que ela estava a desenvolver no momento e que, na altura, foi muito importante para mim. A partir daí achei-me confortável para fazer o que queria fazer, o que também mudou muito a partitura. Pensei que teria pouco tempo para fazer a partitura como queria, mas, no final, acabou por se tornar mais próxima do que estou a fazer agora, neste momento. É quase a questão do happening e como é que isto se pode tratar musicalmente de uma forma mais plástica; e como, em vez de estar tudo notado, em vez de eu trazer o que posso, a partitura é apenas um meio de registar o que os músicos já têm no corpo e de o trazer para palco.
Disseste que a partitura foi ao encontro daquilo que estás a fazer. O que é que estás a fazer, concretamente?
Neste momento, estou a trabalhar com dois colectivos que estou a criar cá. Estamos a trabalhar muito no âmbito do que a Jennifer Walshe chamou “a nova disciplina”, onde o trabalho é muito colaborativo. Não é sobre mim, não é sobre eles, é sobre nós. E nesse espaço todos têm uma voz, todos têm algo a dizer e é um trabalho muito mais democrático, por assim dizer. Não estou eu só no meu quarto a escrever. Por exemplo, numa das peças que estou a trabalhar agora, a partir da poluição no mar, primeiro, entrevistámos cientistas… ‘E como é que nós podemos abordar isto musicalmente? Como é que vamos procurar esta informação toda para tornar isto uma performance em palco?’ Como esta é a primeira produção do colectivo, ao longo do processo, o meu trabalho foi muito mais do que escrever; foi mais o de coordenar e criar informação fora, ver o que é que sai… Uma das fases intermediárias do processo, após a recolha de informação, foi eu ter que criar umas partituras – o que quer que isso signifique – para criar situações, em residências artísticas, para criarmos som. Nesse momento, produzi 7 ou 8 partituras gráficas que nos ajudaram a criar situações nas residências para fazer som com o que nós tínhamos, com as frases dos cientistas… Depois, esse trabalho com as partituras abertas deu-me uma abertura quando cheguei cá: ‘posso fazer isto, os músicos também estão a sentir-se confortáveis em fazer isto. Porque eles também têm este hábito, sabem do que eu estou a falar, vai ser um trabalho confortável para mim também.’
Elaboras as partituras a partir de um trabalho que é feito em conjunto e essas mesmas partituras são, depois, tocadas em conjunto. Basicamente, o que controlas é uma percentagem inferior ao que controlas numa partitura tradicional, mas também já há um conhecimento daquilo que os músicos podem fazer.
Sim. Em vez de eu notar tudo, porque eu sei o que é que o clarinete faz, o que é que o piano faz, o que é que os instrumentos conseguem fazer, eu vou buscar o que os músicos já têm no corpo para eles mostrarem. Os pequenos gestos, as pequenas encenações, mesmo o lado teatral de toda a cena ganha outro corpo em palco, diferente do que simplesmente a música. No final do “A nova disciplina”, Jennifer Walshe diz que devemos lembrar-nos que os músicos têm um corpo, ele está lá e vamos dar-lhe expressão. Depois, a peça foi toda nessa direcção. Mesmo nos ensaios, nestes dias, primeiro começámos um processo muito simples – vamos ler a partitura em conjunto, ver qual é o flow da peça; na segunda fase, fomos passar a peça a primeira vez e, na terceira, quando o som já estava mais ou menos numa direcção, o meu trabalho tornou-se mais no de um director de cena do que propriamente de compositor.
Mas se fores trabalhar esta peça com outro grupo, ou se fores dar esta peça a outro grupo para tocar, o grupo ficará um bocado perdido. Será uma versão completamente diferente, não?
Esse é outro lado. Depende de como a peça vai buscar este lado de ‘o que é que tu tocas? o que é que tu conheces? quero que me mostres o que tu fazes e vamos a partir daí’. Se o músico não estiver habituado a improvisar ou a sentir-se desconfortável – porque sentir-se desconfortável também faz parte de assumir este espaço de ‘eu não sei, e não tem mal não saber, há momentos assim’ – ele vai sentir-se desconfortável, sim. Pessoalmente, considero que há uma beleza nisso de assumir o espaço de desconforto em conjunto, para depois crescer para algo que é nosso.
Para que esta peça seja interpretada e apresentada, tens sempre que estar presente e fazer um trabalho com o grupo que vai apresentar a peça?
Sim e não, porque acho que também há outro lado. Também teria curiosidade de ver o que é que os músicos tiram da partitura e o que é que fazem a partir do texto que está escrito, no caso de não trabalhar com eles previamente. Para mim, é muito curioso ver o que é que eles vão lá buscar. Sei que cada pessoa vai buscar uma coisa diferente e isso também é fascinante.
Ou seja, neste caso, o que vocês vão apresentar aqui é um trabalho colaborativo entre todos, mas a peça sobrevive para além disso.
Sim.
Como fizeste esta recolha dos materiais que utilizas (textos, imagens e outros materiais musicais)?
Já conhecia a maior parte destes textos, como a Ode Triunfal, de Álvaro de Campos, que esteve logo presente desde o início. Um dos grandes inputs foi também o texto que o clarinetista gravou para mim e que se tornou, de certa forma, voz da Natureza, na peça. De Rimbaud, lembro-me de ler há muito tempo as Iluminações, em que o autor descreve a vida da cidade e como é uma pessoa na cidade. Gostei desse lado quase pós-modernista, de certa forma, através do vídeo, da fotografia, do som e do texto… construir a cidade no tempo que eles viveram, a cidade no tempo que vivemos hoje, face ao mundo em que nós vivemos hoje, com o nível de sensação de intensidade do som a crescer de ano para ano, através do que está a acontecer em palco. O vídeo torna-se, a certo momento, mais uma personagem em palco – temos estes narradores, estas vozes fantasmagóricas que só ouvimos na electrónica -, como também se torna música quando ouvimos as buzinas a tocar. As buzinas tornaram-se mesmo presentes. E o vídeo assenta na roupa do performer, mudando o espaço em palco. Depois, o que estamos habituados a ouvir torna-se faísca, através da cor. A peça pediu imagem, era preciso ver alguma coisa. Primeiro foi o texto – senti que as pessoas precisavam de ter algo que pudesse guiá-las, para não perderem o fio à meada. Depois senti o apelo da imagem e decidi mesmo que tinha que tornar objecto as imagens que tinha no meu telemóvel. Para as vozes, falei com os meus amigos de cá e com uma amiga de Portugal, a Joana Martins, que é actriz e que disse que tinha todo o gosto em gravar. As minhas amigas cantoras de cá, dos colectivos, gravaram o texto e eu decidi conjugar estes materiais todos.
Esta dimensão cénica, que é muito importante, é essencial para uma interpretação da obra por outro grupo? Se outros músicos a puserem em palco, esta dimensão cénica – a que está escrita na partitura, porque parte dela está mesmo indicada – é importante, ou pode fazer-se uma re-interpretação?
Sendo tão aberta como é, a partitura promoverá sempre interpretações diferentes. Será sempre outro objecto, se for outro grupo a tocar. Mas creio que o vídeo é essencial – e eu tive essa experiência nos ensaios, porque no último ensaio não houve vídeo – porque, não havendo vídeo, não há texto. Eu sei o texto, porque já o ouço há muito tempo, mas o público chega a um concerto no momento zero, não vai estar a par. E mesmo a imagem também se torna um comentário ao que está a acontecer, por causa da narrativa. Se ele não estiver, perde-se um bocado. Mas creio que será sempre interpretado consoante o que está a acontecer em palco.
Mesmo que o Soundinitiative toque um segundo concerto em que apresenta esta peça, uma vez que há muitas coisas que não têm uma notação fixa, será sempre uma peça diferente.
Sim, de certa forma.
Continua…