Rita Miragaia (1998) e Matilde Freiria (1999) são duas guitarristas em início de carreira que, em 2019, se apresentaram nos Reencontros de Música Contemporânea, estreando duos de António Chagas Rosa e Pedro Berardinelli, a par de solos com electrónica de Rita Torres e Rui Dias. Dois anos e meio depois, apresentam nos Festivais de Outono um programa que deriva dessa primeira experiência enquanto duo, a propósito da qual conversam com a Arte no Tempo.
© Francisco Ferreira
[AnT] Volvidos dois anos e meio, como vêem a experiência de ter preparado um programa com quatro estreias e ainda um duo que liam, também, pela primeira vez, morando as duas em países diferentes?
[RM & MF] Foi uma experiência estimulante e desafiante, uma vez que foi um dos primeiros contactos que tivemos, enquanto intérpretes, com música contemporânea. O facto de vivermos em países diferentes, foi, possivelmente, a maior dificuldade com que nos deparámos, visto que limitou o número de ensaios conjuntos. No entanto, isto levou a que construíssemos e desenvolvêssemos uma relação de confiança no trabalho uma da outra, e a uma melhor organização do nosso método de estudo.
O que é que aquele programa pode ter acrescentado ao vosso crescimento enquanto jovens profissionais?
A realização de concertos com um programa deste carácter não só nos ofereceu uma nova visão, em primeira mão, das possibilidades do nosso instrumento, como aumentou o nosso interesse pela leitura e audição de música com linguagem contemporânea. Proporcionou-nos ainda, a oportunidade de trabalhar directamente com os compositores das obras, com quem o diálogo foi fundamental para a compreensão e posterior apresentação das mesmas. Este desafio lançado pela Arte no Tempo, que impulsionou a criação de um duo, fora do contexto académico, deu-nos a possibilidade de, no ano de 2019, apresentarmos este programa em três países diferentes e, posteriormente, em 2020, gravar parte do mesmo.
Travelling [2018], de António Chagas Rosa, parecia ser o duo menos exigente, na medida em que a partitura apresentava uma escrita mais tradicional; mas essa previsão acabou por não se verificar. Depois de lida, que dificuldades ofereceu a peça e de que modo as ultrapassaram?
Embora a partitura de António Chagas Rosa seja de leitura mais rápida, por apresentar uma escrita mais tradicional, a sua execução acaba por ser de maior dificuldade, na medida em que parece privilegiar as ideias musicais em detrimento de uma escrita idiomática. As dificuldades foram ultrapassadas através do diálogo e da abertura do compositor para trabalhar connosco, encontrando assim, em conjunto, a melhor forma de reproduzir a sua ideia musical, que acabou por ficar mais clara ao longo dos contactos estabelecidos.
Já a peça de Pedro Berardinelli, posteriormente intitulada num – Sonografia Dactilográfica [2019], prometia dificuldades bem diversas do repertório a que estavam habituadas. Como foi explorar essa partitura para trazer a público uma música tão nova?
Esta é, talvez, a obra que mais explora a conexão e interdependência entre as duas guitarras a nível tímbrico, rítmico, dinâmico, de afinação e de tipos de ataque, tornando-a, por isso, tão estimulante. No entanto, a distância e a impossibilidade de ensaiarmos juntas demonstraram ser um obstáculo.
Com uma partitura tão pormenorizada e que apresenta um grande número de “efeitos” e possibilidades, o trabalho realizado com o compositor foi fundamental para economizar o tempo de leitura e posterior compreensão da partitura e da obra. Para nos ajudar a alcançar a sua visão, Pedro Berardinelli encontrou-se connosco presencialmente e por videochamadas, dando ainda feedback através da troca de gravações. A exploração e apresentação de uma peça desta natureza, dá a conhecer ao público diferentes facetas do instrumento, o que se torna extremamente motivante para nós, enquanto intérpretes.
Tanto Rita Torres como Pedro Berardinelli fizeram a sua formação inicial enquanto guitarristas. Na vossa opinião, esse facto reflecte-se nas peças que estrearam?
Sim, isto reflecte-se sobretudo numa escrita mais idiomática, que se verifica, por exemplo, na utilização e exequibilidade de passagens e posições mais cómodas, bem como nas digitações propostas pelos compositores.
De todas as peças em programa, talvez a que requeira uma escuta mais diferenciada seja The fireflies, twinkling among leaves, make the stars wonder [2015, rev. 2018], de Rita Torres. A guitarra passou a ser um instrumento diferente depois de a teres tocado, Rita Miragaia?
Pessoalmente, senti que todas as obras que apresentámos reavivaram a minha visão do instrumento. A obra da Rita Torres foi particularmente interessante, visto que foi a minha primeira experiência a tocar música com electrónica em tempo real. Os diferentes tipos de som, aliados à electrónica, que pode ser, em certa medida, controlada e manipulada pelo intérprete, convocam e oferecem ao público uma paisagem sonora e visual, sem artifícios, simples, sensível, delicada, mas envolvente.
A ideia de tocarem juntas parece ter partido do exterior, de um desafio lançado pela Arte no Tempo. De algum modo, parece ter corrido bem, já que o duo se mantém. Haverá desenvolvimentos futuros?
Temos consciência que a formação deste duo dificilmente teria ocorrido se não tivesse existido esta proposta por parte da Arte no Tempo, uma vez que aconteceu quando estávamos a estudar em países diferentes. Embora tenhamos tocado bastantes vezes juntas, enquanto estudantes do Conservatório de Música de São José da Guarda, nunca tínhamos tido a oportunidade de tocar enquanto duo e, também por isso, nunca tínhamos ponderado esta possibilidade. Por ter sido uma experiência tão gratificante e por gostarmos de tocar juntas e debater ideias, gostaríamos de dar seguimento a este projeto, explorando não só repertório contemporâneo, como também de outros períodos musicais.
Terem crescido na mesma cidade e estudado com os mesmos professores beneficiou de algum modo o vosso trabalho em duo? O mesmo facto pode também ter empobrecido alguns aspectos da experiência conjunta. Em caso afirmativo, quais?
O facto de nos conhecermos facilitou o desenvolvimento da relação de à vontade e de trabalho necessário para a realização de música de câmara.
Apesar de termos tido os mesmos professores que, na nossa opinião, contribuíram para a existência de opiniões e ideias musicais muito semelhantes, reparámos que temos formas de as atingir e de tocar muito diferentes, proporcionando, assim, um ambiente de aprendizagem amplo e mútuo.
Se quisessem criar em alguém a necessidade de vir assistir ao vosso concerto, de que modo o apresentariam?
Neste concerto é possível observar diferentes linguagens e características do instrumento que vão despertar diferentes emoções e reações por parte do público. Estas técnicas de composição e a possibilidade de ouvir peças recentes e de compositores do nosso país constituem um momento único e imperdível. Este ano, alterámos ligeiramente o nosso programa acrescentando à peça da compositora Rita Torres uma outra peça para guitarra solo, que será interpretada pela Matilde Freiria, intitulada Policromia Vidrada, da compositora Inés Badalo, indo ao encontro do mote principal dos Festivais de Outono de 2021, no qual as mulheres são as principais protagonistas.
Obrigada pelas respostas e votos de sucesso para o duo!