O primeiro contacto da Arte no Tempo com a compositora Mariana Vieira (Sintra, 1997) aconteceu em 2016, com o regresso do festival Aveiro_Síntese enquanto bienal. Tem sido um privilégio acompanhar o seu percurso e trabalhar em conjunto na estreia de algumas obras que a AnT lhe tem encomendado, quase todas com intuitos pedagógicos, como as peças para instrumento solo e electrónica, ou para agrupamento e electrónica ou, ainda, o Coro dos Pequenos Cidadãos. Em Novembro passado, o ars ad hoc estreou o seu primeiro quarteto de cordas, no Festival de Música Contemporânea de Évora, num programa com música de Beat Furrer. Antecipando os concertos de Páscoa, em que o ars ad hoc interpretará novamente a obra de Mariana Vieira (a par do clássico As 7 últimas Palavras de Cristo na Cruz, de Haydn), a AnT quis saber um pouco mais sobre o trabalho da compositora.

[AnT] Como recebeste o desafio da Arte no Tempo para criares o teu primeiro quarteto de cordas, abordando uma formação instrumental tão carregada de História?
[MV] Falando especificamente da questão do peso da História, recebi com um misto de respeito e de indiferença. Acho que é importante encontrar um equilíbrio no que toca a esse respeito, não ignorando que existe, de facto, um passado muito forte, mas também não dar demasiada importância a ponto de tal nos paralisar. Naturalmente, foi um desafio que agarrei com muita vontade e a minha abordagem a esta problemática passou pela escolha de um elemento base da peça que me parece ser, de certa forma, historicamente neutro – um crescendo acentuado – e criar um discurso em torno de variações desta ideia.
Esta obra foi estreada no contexto do Festival de Música Contemporânea de Évora, pelo ars ad hoc. Como resumes a experiência de trabalhar com este agrupamento e que sentimentos partilhas ao alinhar o teu quarteto com obras incontornáveis de Beat Furrer para o mesmo colectivo instrumental?
O ars ad hoc é composto por músicos de excelência, que dominam várias linguagens musicais contemporâneas, além do lado humano, claro, que é fundamental, o que tornou o processo de ensaio muito fluido e focado. Sobre partilhar o concerto com obras de Beat Furrer, não posso deixar de notar o meu nervosismo, não fosse este compositor um dos que mais admiro.

O que nos podes contar sobre a composição desta peça? Motivou-te algum tipo de inspiração durante o processo criativo, como técnicas que tenhas trabalhado mais recentemente, ou alguma experiência particular que tenha facilitado a escrita da obra?
Como referi acima, a ideia inicial partiu da variação de um elemento muito simples. Coloquei este desafio a mim própria por sentir que se trata de uma dificuldade minha recorrente – a capacidade de gerar novo material a partir de ideias pré-existentes, em vez de estar sempre a gerar material completamente novo. Também reutilizei algum material de peças anteriores que me parecia estar sub-desenvolvido. Além disso, posso referir que na altura ouvi bastante os quartetos de cordas de György Ligeti, Alberto Posadas, Helmut Lachenmann e Stefano Gervasoni, que foram referências na composição da peça. Lembro-me também de ouvir uma conferência do Alberto Posadas onde ele falava da composição de quarteto de cordas como uma situação em que o compositor está “despido”. Com isto, ele queria dizer que, ao contrário por exemplo de um ensemble, onde proliferam timbres muito diferentes (algo em geral apelativo aos compositores, pois têm uma maior gama de contrastes tímbricos), no quarteto de cordas existe uma homogeneidade tímbrica muito própria. Esta homogeneidade pode ser evitada, naturalmente, com recurso a técnicas estendidas e a amplificação, por exemplo, mas no meu caso interessei-me mais por afirmar esta homogeneidade – acabei por utilizar poucas das chamadas “técnicas estendidas” (ou utilizei algumas que são das mais comuns) e por explorar as potencialidades do quarteto de cordas enquanto a unidade de música de câmara muito própria que é.
As tuas obras revelam uma certa continuidade nos recursos expressivos utilizados (como glissandos, pizzicatos ou mesmo contornos dinâmicos escritos, mais ou menos explícitos). Será este um elemento característico do teu trabalho musical?
Talvez sim. Acho que o que está por detrás dessas técnicas é a ideia de “dar vida” às linhas musicais – ou seja, esses recursos podem funcionar como geradores de tensão na música. Se eu quiser um momento quase estático na música, posso ter uma nota fixa. Mas se quiser acrescentar alguma tensão e direcção, posso ter a mesma nota fixa que começa a fazer um glissando muito lento, quase imperceptível, o que traz uma nova vida interna àquela linha. Mais ou menos a mesma coisa acontece com os contornos dinâmicos escritos, e também com pizzicato, dependendo de como é utilizado. São recursos expressivos que me interessam, mas que são também bastante comuns e que estudo nas peças de outros compositores.

Que desafios e expectativas podes partilhar connosco para os teus próximos projetos? Sendo este o primeiro quarteto de cordas, é de esperar outros mais para breve, eventualmente com electrónica?
Bom, uma ideia que ficou incompleta para mim foi a de fazer um segundo andamento Adagio para este quarteto de cordas. É um projecto ao qual gostaria de voltar. Neste momento, no entanto, tenho de me concentrar em finalizar os dois projectos que tenho em mãos, uma peça para oboé e electrónica e uma peça para tenor e orquestra que está a ser desenvolvida no âmbito de um workshop ENOA na Fundação Calouste Gulbenkian, com o compositor e maestro Luca Francesconi.
Obrigado pelas tuas respostas.