Nascida em Lisboa e aluna da Licenciatura em Composição na Escola Superior de Música da mesma cidade, Eva Aguilar (2002) foi a compositora escolhida para escrever para o Plus Minus Ensemble, no âmbito da chamada de peças para o Tubo de Ensaio 05. Desde que escreveu Insula, em 2021, já teve oportunidade de trabalhar com vários músicos e compositores e integrar projectos multidisciplinares variados, com o dinamismo próprio de uma jovem compositora que está no início de um percurso que se espera promissor. É sobre a estreia nacional desta obra que a Arte no Tempo [AnT] conversa com a compositora.
[AnT] “Caminhar em si próprio e, durante horas, não encontrar ninguém – é a isto que é preciso chegar”. Ouvir a tua obra Insula é um convite para entrar numa ilha deserta?
[EA] Cada instrumento insular, em momentos de exteriorização que ameaçam colapsar, intercalados com espaços do vazio, estagnados, interiores, ofegantes, onde tudo tudo se faz estranhamente próximo e a proximidade se transforma em ar. Andava a ler António Damásio e deparei-me com textos que falavam sobre a ínsula ou lobo insular, pertencente ao córtex cerebral. É uma das regiões mais recônditas do cérebro e, para além de ser responsável por funções vestibulares e mapeamento de emoções, processa experiências sensitivas, nomeadamente auditivas, em conexão com o lobo temporal. Tudo isto me fez sentido em adição à acepção mais directa da palavra “ínsula” como ilha, por um lado, forçada pelos distanciamentos deste tempo insólito, impactante, incerto que foi a pandemia, por outro, genuinamente enriquecedor enquanto espaço de abstração e descoberta pessoal.
Para ti, a “ilha” é um refúgio necessário ao processo criativo? Ou é a composição que te transporta para essa solitude?
Até agora, falando com base no que tenho vivenciado, não tenho sentido necessidade de cristalizar uma forma de estar que sirva todos os propósitos composicionais. Vai tomando forma um processo que será único e orientado para cada desafio a que me proponho, tendencialmente de natureza introspectiva. Estou habituada a passar tempo comigo mesma, não que isso se traduza em ambiente de estufa. Tenho notado que posso chegar a essa minha ilha e ela agradece, rodeada de estímulos exteriores. A composição está intrinsecamente ligada à forma como percepciono e imagino o mundo, o que tenho a meu alcance no presente. Não é algo que possa esquecer momentaneamente e invocar magicamente em condições circunscritas. Trata-se da minha sensibilidade, acompanha-me a todo o segundo e vive comigo. A frase de Rainer Maria Rilke relembra-me que lidar com uma ocupação passa por lidar comigo mesma.
A tua obra foi composta na sequência da selecção da proposta no âmbito de uma chamada para o Tubo de Ensaio #05, com o Plus Minus Ensemble. Como foi o trabalho desenvolvido com o agrupamento enquanto a escrevias? Como foi pensado o processo de escrever especificamente para estes músicos?
Foi um longo processo, uma constante experimentação in loco, partindo do som como matéria e que, por obra de um segundo lockdown em Portugal, evoluiu para uma outra necessidade – a de seguir a peito a frase de Rainer Maria Rilke, uma máxima importante neste trajecto, quando passei de poder tactear e esculpir directamente o som que queria ouvir, para ter de saber encarar um vazio. Encontrei uma forma de o transformar em algo a meu favor, guando-me pelo critério de selecção natural da memória, dado que me fui apoiando, por tempos, nesta faculdade: deixava ideias auditivas a marinar propositadamente num caldeirão, criando uma dependência e um constante compromisso em revê-las e ouvi-las mentalmente. Como resultado, ficavam na minha peça apenas armazenadas e consequentemente salvaguardadas as que, por razões conscientes ou subconscientes, me tivessem captado a longo prazo. Este exercício de repensar métodos e situações, observar através de outros pontos de vista, foi-me extremamente benéfico.
Os músicos do agrupamento foram sempre muito abertos e flexíveis, empáticos, entusiasmados, com vontade de colocar as minhas ideias em prática da melhor forma possível. É importante ter em conta que tinha dezassete anos quando o Plus Minus e a Arte no Tempo me seleccionaram para esta proposta. Actualmente, encontro-me com dezanove. Digo isto porque, entretanto, neste intervalo de tempo, passei por imensas experiências, tive várias oportunidades de expansão neste interminável percurso de aprendizagem e sinto que, no presente, tenho-me encaminhado para abordagens até mais colaborativas, de co-criação com os intérpretes, algo em que acabei por não apostar tanto com o Plus Minus, estando ainda a tactear terreno, a interrogar-me sobre diferentes processos de criação, a experimentar vários possíveis caminhos; no fundo, a testar o que funcionaria melhor, sabendo que seria também um trabalho desenvolvido inteiramente à distância. Em tempo de video-chamada, houve interacções importantes no enriquecimento da peça, sugestões técnicas muito úteis dadas por Mark, Vicky e Aisha, não obstante, de facto, mais localizadas após o processo de criação estar praticamente finalizado.
Escrever para música de câmara é, inevitavelmente, pensar o conjunto, a partilha, o outro. Só por esse caminho é possível fazer funcionar o trio e dá-lo a conhecer ao público – momento também ele de partilha e de recepção colectiva. De que forma é que se pensa – e se escreve – o “caminhar em si próprio” repartido por 3 músicos?
Pensei o conjunto apenas numa segunda fase, em que o expelir individual do som, a vontade repartida estava já satisfeita e vinha de situações que não estariam à primeira vista construídas para integrar um todo. Uma necessidade primordial quase urgente do Eu, que se permite a uma natureza desconexa. Depois, articulá-la em grupo, fazer com que pertença a um só ser que caminha em si próprio.
A exploração tímbrica que fazes dos 3 instrumentos é rica, mas o piano é, sem dúvida, aquele que mais salta à vista por toda a preparação que exige. Como foi a tua exploração prévia do piano, até chegar a indicações tão precisas? O que procuravas?
Dos três, o piano foi sem dúvida um objecto em foco – tinha interesse e curiosidade em conhecer e estudar melhor o seu interior. Também aquele ao qual poderia, com maior facilidade, recorrer e fazer experiências. Indicações tão precisas devem-se ao facto de ter passado muitíssimas horas em redor do instrumento, especulando e absorvendo possíveis interacções com objectos. O que mais me entusiasmou foram as sonoridades microtonais, muito ricas, que obtive com os ímanes de neodímio, que deixam de ser apenas um efeito, para possibilitar um universo muito próprio com diferentes massas, formas (cilindros, esferas, cubos), apresentando variados modos de execução tendo em conta fenómenos de oscilação em contacto com as cordas, forte atracção e repulsão magnéticas, preparações móveis alcançadas com uma enorme brevidade, tocar no teclado com preparações fixas e muito mais. Além disso, os ímanes cilíndricos, que me foram apresentados pela pianista Joana Sá (desde então tenho-os sempre por perto!), permitiram-me simular espectralmente algumas gravações que fiz de pianos velhos, completamente desafinados e que queria incluir.
É a primeira vez que exploras esta dimensão do piano preparado? Tiveste em consideração algum contributo de Mark Knoop no processo de escrita?
Sim. Gostei tanto desta primeira experiência de escrever para piano preparado, com o Plus Minus Ensemble, que senti que queria, logo de seguida, escrever uma peça a solo, onde fosse mais a fundo na minha exploração e pudesse direcionar toda a minha atenção para o piano. Entretanto tenho uma obra que desenvolvi no Laboratório de Piano Preparado para jovens compositores, open call do Divertimento Ensemble (IT).
No decorrer das video-chamadas com o Mark, foi deveras marcante observar um músico tão criativo e engenhoso na forma como ia gerindo todas as preparações e logísticas associadas, dando preciosas sugestões como, por exemplo: utilizar um comprido bloco de madeira sobre o teclado para cobrir um largo âmbito com o pedal sostenuto; alternativas mais viáveis quanto à execução de acordes de harmónicos, sem blu-tack; portamentos entre harmónicos no registo médio, utilizando uma barra de metal; substituição de alguns ímanes por parafusos estratégicos no registo grave. Foi muito enriquecedor poder contar com a sua ajuda e contribuição!
A obra já devia ter sido apresentada em Aveiro – não o foi por força da pandemia. Ainda assim, o Plus Minus ensemble teve oportunidade de a estrear no Dialogues Festival, em Edimburgo, em julho de 2021, e há até uma gravação disponível desse concerto. Tiveste oportunidade de colaborar com os músicos na preparação da estreia?
Por infortúnio da pandemia, não pude ir até Edimburgo para acompanhar de perto a estreia da obra. No entanto, até à data do concerto, em julho 2021, fui contactando com os músicos Mark, Vicky e Aisha, através de video-chamadas, trocando mensagens de correio electrónico, esclarecendo dúvidas técnicas, conversando com eles sobre a obra. Foram muito generosos ao conseguir proporcionar uma primeira escuta da peça, incluindo-a em concerto ainda antes de outubro 2022.
Por cá, vamos poder ouvir Insula no dia 8 de outubro, no Teatro Aveirense e, eventualmente, conversar sobre ela na oficina do Tubo de Ensaio.
O que podes dizer para persuadir o público a assistir ao concerto?
Será um privilégio poder partilhar este programa com os compositores Kristine Tjøgersen, Lois V. Vierk, Joanna Bailie e Alexander Schubert, que desenvolvem trabalho com uma forte componente visual, quer a nível performático, cénico, quer desafiando relações entre vídeo e som. De facto, uma óptima oportunidade para poder ouvir o Plus Minus Ensemble a cultivar e perpetuar novas criações musicais. Resta esperar que lá nos encontremos, cada um caminhando em si próprio, e que esse espaço encapsulado
possa conter mais do que aquilo que a linguagem pode dizer.
Obrigada pelas tuas respostas.