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João Reis: entre a palavra e a música

O seu rosto é conhecido do grande público graças à televisão, mas João Reis faz, sobretudo, teatro. Foi o elemento escolhido por Nuno Aroso para contracenar consigo no projecto A Fog Machine e outros poemas para o teu regresso, projecto que assumiu como seu e ao qual se entregou de forma genuína, encenando e interpretando de forma notável o texto inédito de Gonçalo M. Tavares.

© Vitorino Coragem

© Francisco Ferreira

[AnT] Apesar de a ideia d’A Fog Machine e outros poemas para o teu regresso ter nascido de uma motivação do Nuno Aroso, entregaste-te integralmente ao projecto artístico, quer como encenador, quer como actor. Pressupõe-se que terá havido uma identificação com a temática, uma afinidade. Será esta relação, por vezes nublada, com o tempo humano, com o caminho que se fez e o que falta fazer, uma condição do artista?
[JR] Sem dúvida, e nem sequer vou entrar pelo lado da precariedade e da incerteza relativamente à condição do artista ou dos artistas, porque já é um arquétipo. Passamos a vida a reinventar-nos e a adaptar-nos às circunstâncias e isso, de certo modo, cria assim uma bolsa suplementar de fôlego e de risco. Mas, sim, numa primeira instância, o que me atraiu neste projecto foi o desconhecido, o território desconhecido que é, para mim, esta intersecção entre a música contemporânea e as palavras do Gonçalo M Tavares a partir de um tema em que eu e o Nuno Aroso descobrimos que temos dúvidas e preocupações comuns.

© Francisco Ferreira

Este não é o primeiro projecto que desenvolves com música, nem sequer com música contemporânea. O que há em A Fog Machine e outros poemas para o teu regresso que possa ter-te levado por caminhos novos ou desconhecidos?
É um facto que tenho trabalhado com alguma regularidade em projectos em que a música assume um papel preponderante (com a Orquestra Gulbenkian, a Metropolitana de Lisboa, o Remix Ensemble, os Divino Sospiro, só para mencionar alguns) mas, maioritariamente, como intérprete ou narrador. Aqui tenha uma tarefa um pouco mais ambiciosa e bastante mais arriscada, mas isso funciona assim como uma espécie de suplemento vitamínico. Por outro lado, a questão da evocação da memória e da dúvida em relação ao futuro são matérias combustíveis e potencialmente produtivas.

© Francisco Ferreira

Quais são os desafios da encenação num espectáculo cuja criação parte, por um lado, de um texto inédito e, por outro, de obras musicais compostas para percussão, uma manifestação musical tão “coreográfica” e por si só tão carregada de narrativa? A palavra, como dizia antes o Nuno, é o significado e a música a abstração. De que forma estes discursos convivem no espectáculo?
A minha relação com a música é puramente intuitiva e emocional. Não sei ler nem interpretar e tento, na medida das minhas limitações e fragilidades, dar um sentido a isto tudo. A narrativa está carregada de metáforas, algumas delas provavelmente invisíveis, mas o abstracto também te dá a liberdade de poderes inscrever o que quiseres nessa intersecção entre música e texto. Eu diria, sem qualquer pretensão para além do evidente prazer que daí retiro, que é preciso ter uma “alma gasosa”, como diria Novalis, para conseguir criar um discurso coerente e harmonioso entre as partes, sem que nenhuma delas saia em perda e tenha o seu espaço de afirmação e beleza.

© Francisco Ferreira

És um actor com um percurso firmado e um dos mais destacados portugueses. Encenar parece ser um interesse mais recente, que tens levado a cabo mais regularmente e de forma muito bem sucedida. A encenação surge como consequência natural da longa experiência de representação?
Sim, absolutamente. Mas muito raramente me aventuro nos dois territórios em simultâneo. É preciso criar um distanciamento que muitas vezes se afigura impossível em momentos em que é necessário tomar decisões. Muitas vezes pergunto-me: quem decide agora, o actor ou o encenador? Às vezes, o actor antecipa o que o encenador não consegue ver, e vice-versa, e é a partir deste jogo permanente e intrínseco que se descobre o caminho ou os caminhos.

De que modo convencerias o público indeciso a assistir a A Fog Machine e outros poemas para o teu regresso?
Bom, primeiro porque é um belíssimo texto do Gonçalo M. Tavares em estreia absoluta; depois, porque são muito raros os momentos em que a música contemporânea (nomeadamente em Portugal), e com obras escritas para percussão, tem oportunidade de se mostrar numa relação tão profícua com a palavra; finalmente, porque a matéria que aqui está em jogo nos faz pensar e reflectir sobre os verdadeiros propósitos de uma certa ideia de progresso.

Obrigada pelas respostas!

entrevista realizada em Outubro de 2021