Faz agora precisamente duas semanas que iniciámos a 4ª edição dos Reencontros de Música Contemporânea e, como previmos, o saldo artístico desta bienal é muitíssimo positivo. Mas é do segundo fim-de-semana que agora vimos falar.
Equilibradamente dividido entre música de câmara e orquestral, com a presença da voz em ambos os contextos, o segundo fim-de-semana iniciou-se a 25 de Maio, com o duo Tágide e António Chagas Rosa [c6]. A abrir a noite, Inês Simões e Daniel Godinho fizeram-nos mergulhar num ambiente sombrio, para a estreia absoluta do monodrama de profundis [2021] de Ruben Borges (1994) – uma encomenda da Arte no Tempo (AnT) financiada pela Direcção Geral das Artes. Seguidamente, António Chagas Rosa fez o público (disposto também no palco) mergulhar num novo silêncio para escutar uma brevíssima e sábia contextualização de O Livro dos Jardins Suspensos Op. 15 (Das Buch der hangenden Gärten Op. 15 [1908-9]) no caminho que Arnold Schönberg (1874 – 1951) estava a traçar para uma nova música – um breve discurso límpido e cativante em que o piano serviu para ilustrar algumas ideias e aguçou o apetite para a interpretação do ciclo, que o duo Tágide entrecortou com algumas canções de um outro, da autoria do próprio António Chagas Rosa: Cicuta.
Mesmo sem lotação esgotada, o sentimento dos presentes foi de plena satisfação e preenchimento, aguçando a curiosidade para o concerto do dia seguinte em que a Orquestra Metropolitana de Lisboa (OML) haveria de apresentar, em estreia absoluta, o novo Concerto para violino e orquestra [2023] de António Chagas Rosa [c7] – outra encomenda da AnT financiada pela Direcção Geral das Artes.
Perante uma plateia numerosa, o concerto de sexta-feira abriu com o Concerto para Cordas em Ré menor op. 17 [1951], de Joly Braga Santos (1924 – 1988), apresentando desde cordas muito seguras e afinadas, a que haveriam de se juntar sopros e percussão para acompanhar José Pereira, no Concerto para violino e orquestra de Chagas Rosa. Obra de uma escrita fluida, tematicamente rica e circulando por atmosferas diversas, convocando sabiamente referências aparentemente inconciliáveis, o Concerto para violino de Chagas Rosa dá ao solista a oportunidade de brilhar sem malabarismos forçados e inconsequentes, tendo contado aqui com uma prestação magnífica de José Pereira, secundada por uma orquestra magistralmente dirigida por Pedro Neves. A completar este concerto, cujo programa contrasta com o resto da bienal, a OML interpretou uma obra com mais de sete décadas do compositor cujo centenário de nascimento ocupou o fim-de-semana um pouco por todo o mundo: o Concerto Romanesco [1951] de György Ligeti (1923 – 2006).
Viajando para um mundo à primeira vista muito distante daquele que a OML nos trouxe, no sábado, dia 27, exactamente um ano após ter estado no Teatro Aveirense a interpretar obras de Clara Iannotta, Joanna Bailie e Simon Steen-Andersen, o ars ad hoc partilhou o espaço do palco com o público (de outro modo, não teria sido ouvido sem amplificação). Ao mesmo tempo que, da rua, chegavam os sons comemorativos do final de temporada nacional de futebol, três músicos mantiveram-se concentrados na tarefa de dar a escutar três obras de Helmut Lachenmann. Eventualmente em estreia nacional, Dal niente – Interieur III [1970] foi a primeira obra a soar naquele concerto dedicado a Lachenmann. Muitas das subtilezas da escrita desta obra inaugural de uma nova estética inovadora terão sido camufladas pelo barulho proveniente do exterior, mas Horácio Ferreira havia já demonstrado a seriedade e profundidade do seu trabalho durante a tarde, num ensaio a que o público, infelizmente, não pôde assistir. Menos azar teve João Casimiro Almeida, já que o piano foi amplificado no momento em que interpretou pela primeira vez a mesma peça para piano que a sua antiga professora, Madalena Soveral, havia apresentado em 2017, na primeira edição dos Reencontros de Música Contemporânea: Guero [1970]. Juntos, com Gonçalo Lélis, este trio apresentou pela terceira vez a colossal Allegro sostenuto [1986-88], numa surpreendente interpretação.
Se o concerto da OML tinha como título “Três concertos”, o da OB contava com a participação de três solistas noutras tantas obras, mesmo que uma delas fosse apenas o resultado da junção de três árias de uma ópera. O Concerto para Saxofone [2021] de João Carlos Pinto (1998) foi finalmente ouvido na íntegra. Luís Salomé mostrou-se em plena forma para a interpretação deste exigente concerto, que apresenta uma orquestra arejada, com fortes traços de humor. A Orquestra das Beiras esteve à altura do desafio, sob a enérgica liderança do maestro Nuno Coelho. Contrastando com o Concerto para saxofone, o Concerto de Outono, para oboé e orquestra [1983], de Jorge Peixinho (1940 – 1995), fez reduzir as pulsações da plateia para a fruição de uma obra mais lenta e de bem mais longa duração, generosa em sons sustentados, como se o compositor estivesse a descobrir a harmonia. Destacou-se o solista, Tiago Coimbra.
Novamente em modo mais vivo, e no exacto dia em que se celebrava o centenário do nascimento do compositor, o público despertou para o universo da ópera Le Grand Macabre, de György Ligeti, na sua versão mais acessível: Mysteries of the Macabre [1993]. Foi solista a soprano Andrea Conangla, que conquistou o público desde o primeiro momento, desempenhando o seu papel de forma convincente e criativa.
Os Reencontros de Música Contemporânea regressam em 2025. Não será fácil superar o nível geral desta 4ª edição, mas estamos apostados em tentar, pelo menos, igualá-lo.
Deixamos um profundo agradecimento a todos quantos fizeram esta bienal acontecer, assim como àqueles que partilharam dos momentos em que a música aconteceu.
A programação da bienal Reencontros de Música Contemporânea é da responsabilidade da Arte no Tempo, estrutura apoiada pela Direcção Geral das Artes, que conta com a colaboração e apoio do Teatro Aveirense / Câmara Municipal de Aveiro na organização da bienal, entre outros projectos.
[01.06.2023]