Que bons que são os dias de grande azáfama da bienal Reencontros de Música Contemporânea – encontro de músicos, de música e destes com o público. O saldo do primeiro fim-de-semana da 4ª edição da bienal dificilmente poderia ser mais elevado.
Iniciando na noite de 18 de Maio, com a garantia de qualidade de Nuno Aroso e de Kuniko Kato, o projecto Portugal|Japão chegou finalmente a Aveiro, perante uma generosa plateia que aplaudiu efusivamente. Ideia mais recente foi a de acrescentar uma obra de Misato Mochizuki ao programa adiado desde 2021. Quark – Intermezzi III [2010] é uma obra timbricamente diversificada, que vive um pouco na escuridão do registo grave e que contrastou com Conversation, obra para marimba solo de Akira Myioshi que Kuniko Kato interpretou a pedido de Nuno Aroso, em vez da prevista Torse III, do mesmo compositor.
Composta a partir do poema The Transparent Glass da poetisa japonesa Kazue Shinkawa (1929), a obra Glass Landscapes [2021], de Inés Badalo (1989), é já parte do repertório de Nuno Aroso, desde o momento da sua estreia, nos Festivais de Outono de 2021 (num programa que dividiu com o seu CLAMAT – colectivo variável). Trata-se de uma sedutora obra para vidro amplificado, que abrange uma generosa gama de frequências reduzida em amplitude, e que Nuno Aroso toca com grande à-vontade.
Antes da interpretação do duo From the journal of Delacroix [2021], de António Chagas Rosa (1960) – uma obra para dois percussionistas, mesa e papel sobre a qual paira um registo sonoro, em loop, de um excerto dos diários de Delacroix – Kuniko Kato voltou a oferecer o contraste das alturas definidas, com mais uma das suas interpretações ‘coreografadas’ à marimba: Liebster Jesu, Wir sind hier, peça que Atsuhiko Gondai (1965) compôs em 2001 por encomenda sua e que a própria estreou, integrando-a o no seu repertório.
Excepção nesta edição da bienal, a sexta-feira foi o único dia em que decorreram dois concertos. O primeiro [c2], no palco da Sala Principal do Teatro Aveirense, juntou peças para instrumento solo e electrónica, do projecto Nova Música para Novos Músicos, à apresentação de uma peça seleccionado no âmbito da rubrica Música em Criação. Foram cinco as peças para instrumento solo e electrónica estreadas neste primeiro concerto (outras ficaram para domingo). Martim Carvalho, da Escola Profissional Artística do Alto Minho, estreou Like to a ship that storms urge on its course [2023], para percussão e electrónica, de Nádia Carvalho (1994); Alícia Tavares, da Escola Artística de Música do Conservatório Nacional, estreou How dare you? [2019], para voz e electrónica, de Diogo Novo Carvalho (1986). Os restantes três jovens estudantes de música do ensino secundário que se apresentaram em palco são todos alunos da Escola Artística do Conservatório de Música Calouste Gulbenkian de Aveiro: Miguel Martins estreou Apelos imprecisos da memória [2023], para oboé e electrónica fixa, de Sara Marita (1999); Rodrigo Nunes estreou Siderus Morientis Lamentum [2023], para clarinete e electrónica em tempo real, de Eduardo Marques (2000); e Beatriz Figueiredo estreou Que vento é este? [2023], para trompa e electrónica, de Solange Azevedo (1995).
A última estreia da tarde foi a de Until Quantum [2023], de Cristóvão Almeida (2000), um duo para eufónio e percussão interpretado pelos seus colegas Sidnei Rebelo e Pedro Gouveia – todos alunos da Escola Superior de Música de Lisboa.
Um dos aspectos que distingue os clássicos da nova música é o facto de os intérpretes se moverem perfeitamente à vontade na sua interpretação. Foi o que aconteceu na noite de sexta-feira [c3], com Tiago Coimbra a fazer-nos regressar a um “clássico contemporâneo”: a Sequenza VII [1969], de Luciano Berio (1925). Depois dessa obra que inaugura a contemporaneidade no oboé, Tiago Coimbra apresentou a estreia absoluta de três obras compostas muito recentemente para si, começando por Vytra [2023], para oboé e electrónica (8 canais) da italiana Daria Baiocchi (1978). Carlos Caires (1968) – de última hora requisitado também para assistência informática musical a este concerto – partiu da parte de oboé de All-in-one expanded para compor One from All-in-one [2023], para oboé e electrónica (6 canais), por encomenda da Arte no Tempo. Com uma parte electrónica mais simples, mas uma escrita instrumental mais arrojada, a miniatura Knurren [2023] ficou para o final do concerto, tal é a exigência física da mais recente peça de João Moreira (2004).
O sábado foi marcado pelo início do estágio Nova Música para Novos Músicos e por um recital [c4] do nível do de Tiago Coimbra, mas com um repertório mais variado. Novamente no domínio dos duos, mas sem estreias ou encomendas da AnT, os protagonistas foram os guitarristas Gil Fesch e Nuno Pinto, que interpretaram magistralmente Salut für Caudwell. Musik für zwei Gitarristen [1977/2020], de Helmut Lachenmann (1935). Foi uma noite belíssima, com casa cheia, em que couberam duos mais recentes, de Inés Badalo e de Mark Andre (1965) – respectivamente Ki e iv 14, ambas de 2014 – e solos para guitarra eléctrica: a miniatura Study for Metal Bottle Necks [2018], de Rebecca Saunders (1967), interpretada por Gil Fesch, e Trash TV Trance [2002], de Fausto Romitelli (1963 – 2004), interpretada por Nuno Pinto. Em boa verdade, o que fica na memória é a fabulosa interpretação deste duo da colossal obra de Lachenmann – melhor parece impossível!
O final da tarde de domingo trouxe mais estreias, todas elas por jovens estudantes de música oriundos de diferentes escolas do país. Contando com a presença dos próprios compositores, Mercedes Canhoto, aluna do Conservatório Regional de Castelo Branco, fez a estreia absoluta da peça para violino e electrónica Micro Images [2022], de Hugo Vasco Reis (1981), enquanto Laura Monteiro da Silva, da Escola Profissional de Música de Espinho, estreou a peça Laura – La Fontaine de Vaucluse [2020], para violoncelo e electrónica, que Cândido Lima (1939) havia composto para si no primeiro ano da pandemia.
Laura Matadinho e Raquel Almeida, respectivamente alunas da Escola Artística de Música do Conservatório Nacional e do Conservatório de Música de Santarém, estrearam obras compostas já em 2023: Nom perdi eu, meu amigo, des que me de vós parti, para voz e electrónica, de Nuno Trocado, e ‘stenografia #2, para piano e electrónica, de Carlos Lopes. E seguiu-se a estreia das peças de conjunto, à semelhança do estágio de 2022, dirigidas por Rita Castro Blanco, com a preciosa assistência informática musical de Nádia Carvalho. A primeira, wrapping [2023], é uma peça que atribui um certo grau de liberdade aos próprios músicos, com opção entre diferentes materiais musicais; foi composta por Luís Salgueiro (1993) que, além de escrever música e de se ocupar das partituras de outros compositores, dirige também o movimento patrimonial pela música portuguesa (mpmp). A segunda, Luz sobre papel [2023], concilia dois mundos caros à compositora Solange Azevedo: o do som e o da imagem. Trata-se de uma peça «sobre a observação de objectos e instalações que fazem uso de luz e sobre o imaginário que nasceu dessa observação», cuja interpretação foi acompanhada pelas três imagens, da autoria da própria compositora (também pintora), que estão na origem da obra.
Amanhã regressamos ao Teatro Aveirense para mais um intenso fim-de-semana musical, contando que o nível artístico se mantenha elevado como o do primeiro (com o duo Tágide, o ars ad hoc, e as Orquestras Metropolitana de Lisboa e Filarmonia das Beiras, respectivamente dirigidas por Pedro Neves e Nuno Coelho).
[24.05.2023]