Aos cinco anos começou a aprender violoncelo, mas foi com o piano que se identificou e encontrou um caminho pessoal. Quis estudar História, mas a Faculdade não lhe proporcionou em escala adequada o ingrediente pelo qual tem norteado a sua vida: o desafio. O nome de Madalena Soveral parece associar-se mais fortemente à música que Paris lhe desvendou- o repertório do século XX, mas a pianista mantém no horizonte a diversidade de estilos e proporciona-nos o inesperado.
Quinze anos depois do seu recital nas 1as Jornadas Nova Música, a Arte no Tempo foi conversar com Madalena Soveral para confirmar a singularidade de um carácter que nunca cede à tentação do óbvio.
entrevista realizada em Dezembro de 2012, por Diana Ferreira
Música contemporânea
[AnT] Há alguma razão especial para o seu investimento na música contemporânea?
[MS] Quando fui para Paris, entre 1978 e 79, comecei a ouvir mais música do século XX. Foi esse contacto que me despertou a curiosidade e me levou a querer conhecer com maior detalhe um tipo de linguagem a que ainda não tinha tido acesso em Portugal.
Nunca tinha tocado nenhuma peça contemporânea antes de ir para Paris?
Não, porque não estava dentro do repertório dos conservatórios.
Movendo-se a Madalena num meio musical, não teria sido natural tocar algo para lá do programa?
Lembro-me de, nos anos 60, a minha mãe me ter dado uma partitura do Filipe Pires, as Três Bagatelas– obra de juventude, interessante, que cheguei a tocar para o compositor, muito nova. O facto de tocar diante do compositor representava também uma experência nova.
Mas podia ter tocado algumas peças contemporâneas lá fora e depois optar por outro caminho. Por que é que manteve sempre esta insistência num repertório que é menos tocado pela maioria dos pianistas?
Exactamente pela curiosidade por esse tipo de linguagem, por ser completamente diferente e me parecer de acordo com a minha maneira de sentir, de perceber. Havia muita coisa que me agradava muito: uma maior exploração do som, dos ataques, da dinâmica. Naquele tempo, fazer aquilo que se chamava de “música contemporânea”- que era a música toda do século XX- era também distanciar-me um pouco de todo um quadro académico com algumas restrições em termos de execução e de procura do som. A música do século XX libertava; era uma aventura, digamos. Quando se trabalha com um compositor, trabalha-se sobre o resultado musical, pois ao compositor não interessa que a realização se processe desta ou daquela maneira, interessa apenas o resultado. Tocar música contemporânea era, portanto, fugir desse quadro um pouco restritivo, que tinha muito de imposto. (Os clássicos e românticos têm uma tal tradição que esta depois afasta-se mesmo da intenção do compositor, para entrar num esquema mais rígido, mais académico.) Essa liberdade, esse fazer a música no momento era algo muito interessante e muito livre. Isto não significa que os compositores não impõem certos limites para a sua música- depende dos compositores! Mas é sempre um processo muito diferente, muito mais livre.
Acha que é legítimo dizer-se que a música mais recente requer um trabalho de som mais exigente, ou simplesmente é mais livre porque não está preso às referências da tradição?
É mais variado, para já: exige uma multiplicidade de ataques e de maneiras de tocar, para se conseguir um determinado objectivo sonoro. Creio que a audição e a relação com o instrumento e com o som são mais pessoais. É algo que é muito da responsabilidade do intérprete, porque na música do século XX e contemporânea- e quanto mais actual ela for, mais isto se verifica- há muito menos referências. A pessoa está mais livre para ouvir a música. Já para não falar nas primeiras audições, que aí trata-se de construir, de perceber e dar uma forma a uma obra de que não se tem referência alguma; então, trabalho processa-se mesmo só com a audição. A dificuldade está em passar uma coisa que não é conhecida. Há que compor uma obra e lhe dar uma forma, mas há ainda que convencer as pessoas acerca da obra, porque os ouvintes também não têm referência nenhuma. É exactamente o oposto da música clássica em que, no fundo, a dificuldade reside em deixar passar a voz do intérprete em algo que está muito codificado, em que a tradição exerce grande peso. Isto é tudo muito complicado porque eu acho que estou a dividir em duas coisas muito estanques que, na verdade, não o são.
Entre a música “antiga” e a contemporânea?
Entra a clássica e romântica e a música que tem menos referências.
Portanto, a música mais recente, estando associada a menos referências, deixa o intérprete mais livre, mas também com uma maior dificuldade (e responsabilidade) em fazer passar a mensagem que está implícita na música. Mas não acha que, em muitos casos, a opção de tocar esta nova música pode ser encarada, pelos outros, como uma “fuga” da tradição clássica, pelo facto de se temer a concorrência?
Talvez. O que os outros pensam é da responsabilidade deles. É evidente que toda a gente pode fazer uma leitura das escolhas dos outros, uma leitura que é pessoal, podendo dar-lhe a interpretação que está mais de acordo com a sua maneira de estar. Não sei se estou errada, mas creio que as pessoas pensavam que a música contemporânea era fácil e que a outra é que era difícil. E essa ideia era um pouco o resultado de uma falta de conhecimento, antes de mais nada. É óbvio que há música contemporânea fácil, difícil e dificílima. Não se pode generalizar. O facto de eu fazer uma coisa que os outros não faziam também tornava o meu trabalho mais criticável. Havia uma certa crítica implícita, não muito vísivel …à portuguesa. Claro que não vejo o facto de tocar música contemporânea como uma fuga ao repertório clássico! Numa interpretação de uma peça clássica ou romântica, um pianista tem sempre– ou deve ter– uma visão que é pessoal. Há sempre outros pianistas muito acima e muito abaixo, mas não é esse tipo de escalonamento que importa. Se importasse, ninguém mais tocaria música clássica nem romântica. Acho que a pessoa vai ao encontro do desafio que a música representa para si própria e pode chegar a uma interpretação que é pessoal. Não será a interpretação do século, mas é sua! Agora, se essa interpretação comunica com muita gente, com pouca ou com nenhuma, isso já é outra coisa. E, pelo menos no meu caso, não acho que tenha sido uma escolha para fugir seja do que for, porque me identifico mais com enfrentar qualquer coisa do que com a fuga. Não fugi de nada, porque eu nunca deixei de tocar música clássico-romântica. É evidente que, a partir duma certa altura, era mais solicitada para tocar música que mais ninguém fazia. Mas não foi por temer concorrência. Não posso bem dizer-lhe o porquê de tocar música contemporânea; não foi, sequer, um objectivo de carreira. Aconteceu.
Muitas obras não passam da primeira audição e não chegam a entrar no repertório.
Agora é necessário haver mais ligações entre as coisas. Aquele recital do Pierre-Laurent Aimard[1] é um exemplo fantástico de como se pode renovar uma linguagem actual, como a de Kurtag, com os românticos. Trata-se de fazer uma leitura nova de toda a música.
Mas para isso não basta tocar obras antigas e contemporâneas lado a lado, pois não?
Não. Aimard ligou em termos sonoros mundos que são diferentes. Fez uma leitura reduzida- porque tinha que ser: era um recital!– e que era sua, na ligação de coisas que são diferentes. Como o público é cada vez mais eclético, penso que os concertos têm que ser cada vez mais abrangentes. O público especialista, então em música contemporânea, isso só existe numa determinada época– anos 50, 60: aí era uma militância e havia um público especialista. Agora, e cada vez mais, o público é muito eclético, portanto, tem que se abordar muitas linguagens.
Mas acha que há alguma razão para que assim seja? Porque os especialistas já morreram, porque começou a haver outras coisas…?
Porque estamos numa outra época! Agora um concerto não é para um determinado público restrito, é para todo o género de pessoas. Pode ver na Casa da Música que as pessoas que vão a um concerto não são todas especialistas, felizmente.
Mas não foi sempre esse o objectivo?
O objectivo foi esse, mas o público era muito menos diversificado. Agora há uma mistura de tudo e o público é cada vez mais eclético: num mesmo concerto encontramos pessoas com gostos musicais muito diferentes.
Mas porque é que acha que as pessoas vão aos concertos?
Essa pergunta será mais para um sociólogo, mas penso que será por haver uma maior divulgação.
Noutro dia, a propósito de Jorge Peixinho e do GMCL, falou-me do facto do compositor não ter renovado o repertório e de ter continuado a insistir no experimentalismo numa altura em que a música se tornava tecnicamente mais exigente. Quando o diz, refere-se essencialmente ao repertório de outros compositores que o grupo tocava, ou à própria música de Jorge Peixinho?
A tudo. A escolha do repertório do grupo fazia-se um pouco à luz da atitude que Jorge Peixinho tinha perante a música. Como compositor, tem obras extremamente difíceis de tocar, tecnicamente. As obras de grupo não conheço em detalhe para poder falar; mas para piano tem obras fáceis ou acessíveis, obras difíceis e outras extremamente complicadas, como o Estudo nº 5 Die Reihe [A série], de que estou a fazer revisão[2] . A quantidade de informação que ele ali põe é uma complicação que quase não é necessária e é tecnicamente muito difícil. Nunca toquei música dele, mas do que estou a ver agora, a utilização dos pedais em Peixinho é muito para sobrepôr vários planos sonoros, várias ressonâncias, uma com terceiro pedal, outra com meio pedal, ¼ de pedal, etc. Creio que aquelas indicações não devem ser vistas à letra, tendo que ser tudo adaptado ao ouvido e trabalhado. Penso que a preocupação de marcar exaustivamente todas as notações do pedal tinha a ver com aquela procura de sobreposição, nestes casos de ressonâncias… Enquanto compositor, Peixinho tem obras de grande nível técnico, mas a escolha que ele fazia para o grupo, naquela base do experimentalismo, começou a ficar um bocadinho datada. E o grupo não tinha grande nível técnico, na verdade. Ele permaneceu numa franja da música contemporânea, porque imagino que Boulez, Stockhausen e outros, tiveram sempre um grande nível técnico.
Também deviam ter recursos completamente distintos.
É claro. Depois o conceito de intérprete de música contemporânea começou a esbater-se e começaram a aparecer muitos instrumentistas a tocar música contemporânea com uma formação muitíssimo boa em termos clássicos e românticos- grandes intérpretes. Sempre houve Pollinis, mas agora há mais gente.
Mas acha que os compositores devem abandonar o seu caminho quando sentem que estão a perder o comboio do tempo? Devem esforçar-se por acompanhar o seu tempo, mesmo correndo o risco de perder a identidade?
Não perdem a identidade. Veja-se o caso de Ligeti, que é um compositor paradigmático: ele fala nessa ideia da repetição- pensa-se que se está a pisar um terreno seguro, mas, no fundo, a repetição é uma ilusão, e o pior academismo é o academismo pessoal, aquilo que a pessoa repete sempre. Nesse aspecto, Ligeti é um exemplo, porque foi mudando completamente a técnica e nunca perdeu a identidade. Nas obras dos anos 90 também se sabe que é Ligeti. É uma outra coisa completamente diferente, não é?
Sim, mas soa a Ligeti.
Um compositor pode mudar, mas não perde a sua identidade.
…Se for bom e se tiver identidade.
Pronto, são dois aspectos essenciais. Cada compositor tem os seus traços próprios. Mesmo Beethoven mudou imenso, em termos formais… Há aspectos que conservou, que são próprios dele… E Boulez também. O Boulez da Sur Incises e da peça para violino e electrónica não tem nada a ver com o de Repons e muito menos com o das Structures para dois pianos. Estou a falar em três, mas podia falar em quatro. Por acaso fiz essa experiência com um amigo francês que detesta Boulez, mas que detesta o Boulez das Structures para dois pianos: pus-lhe a tocar Sur Incises e perguntei-lhe qual era o compositor. Ele não identificou como sendo Boulez. A pessoa fica ligada ao Boulez dos anos 50 e 60, mas há uma evolução tremenda em termos sonoros. Basta pôr Sur Incises e as Structures para dois pianos: não é o mesmo compositor. Os analistas até vêem que sim; mas estou falar de audição. É impressionante.
Com o compositor
Quando prepara uma obra nova de alguém que ainda é vivo, trabalha sempre com o compositor?
Quer dizer, se o procuro é para não ficar muito mal vista, não é? Estou a brincar, porque já houve quem me dissesse que eu tratava os compositores vivos como se fossem mortos e eu achei a expressão engraçada. Mas acho que se aprende mesmo muito no trabalho com o compositor; não só porque há um diálogo, um trabalho pessoal… Quando se trata de uma primeira execução, o compositor também está ali, há coisas que podem ser discutidas com o intérprete, que o compositor diz que podem ser de outra maneira e, para ele, esse trabalho é também essencial, porque pode ver que algo não funciona e revela outras opções de realização. Isto acontece muito em relação a tempos e, por vezes, a dinâmica. É estranhíssimo que mesmo grandes compositores (Stockhausen, Cage, etc) escreviam num determinado tempo e depois queriam ou metade ou o dobro- nem pouco mais ou menos! Talvez isso agora já não se passe, com a utilização dos computadores. Mas havia uma surpresa em relação àquilo que eles tinham escrito perante aquilo que estavam a ouvir. Portanto, tudo isso é o fazer no momento; criar uma coisa nova exige uma adaptação quer do intérprete, quer do compositor. Com o compositor só se trabalha música, é algo excepcional, diferente de qualquer outro trabalho que se tenha feito. É muito específico. E aprende-se muito porque se trabalha com o resultado musical auditivo. O objectivo é fazer [música] e, sobretudo, se não percebeu, perceber qual é a intenção dele.
Tirando o trabalho feito com compositores em obras em primeira execução, alguma vez foi procurar um compositor para trabalhar uma obra que já estivesse muito divulgada? Por exemplo, com Jonathan Harvey…[3]
Não. Há uns tempos pensei que uma das coisas que eu quereria era entrevistá-lo. Por acaso, nunca dei nenhum passo para o concretizar, mas era um compositor com uma musicalidade mesmo extraordinária. Lembro-me de ouvir no IRCAM uma peça dele para quarteto de cordas e electrónica[4] , feita no IRCAM e tocada no mesmo concerto que uma peça do João Pedro Oliveira. Leio as notas de programa escritas pelo próprio compositor e, quando vou ouvir, havia uma ligação fantástica entre o texto que Harvey escrevera e a audição da peça. Isso nunca acontece- foi uma experiência única. A escrita verbal era uma escrita musical! É extraordinário. Ele realmente era uma pessoa muito especial. E, por exemplo, com o Tombeau de Messiaen, poderia ter tentado falar com ele, mas acho que os compositores também não se interessam muito por trabalhar peças que já são antigas. Já há muita interpretação– se for ao youtube vê 500. Não sei se um compositor com uma obra tão antiga vai ter disponibilidade para ouvir o intérprete e trabalhar com ele. Acho que não tem. Ouvi-lo em concerto, acho que sim. Não sei.
Há pessoas mais generosas do que outras.
Pois é. Exactamente.
Harvey parecia generoso e disponível.
Eu toquei a obra recentemente, mas o que pensei foi fazer uma entrevista relacionada com isso. A peça é musicalmente muito boa; a ligação entre a electroacústica e o piano é de uma grande musicalidade. O resultado auditivo é fantástico.
Tirando a de Harvey, que outras peças de compositores vivos com os quais não trabalhou é que a Madalena tocou?
Aquela peça de Denisov para quatro mãos, que trabalhei para um disco monográfico do compositor, com as Percussões de Estrasburgo, não a trabalhámos com ele. Só que o disco foi lançado no IRCAM e ele estava lá, porque se tratava das Percussões de Estrasburgo. Eu não estive presente nesse lançamento, porque não ia de propósito só com a participação numa parte do disco. Eles também tocaram peças antigas dele, para fazer o disco, e eu desconheço se ele já os tinha ouvido. Eles só trabalhavam com compositores vivos, a fazer primeiras audições e a escrever para eles. Mas é isso: o que o compositor gosta é que toquem as suas obras actuais.
Talvez porque é aquilo que está mais presente e com o qual o próprio compositor mais pode evoluir.
E que representa melhor aquilo que ele é no momento. Às vezes há coisas antigas que eles nem gostam que se toque, talvez porque até nem gostam muito da obra. Querem sempre que seja tocado aquilo que é actual.
Os compositores com quem trabalha mais são os portugueses?
Sim, bastante com os portugueses.
Trabalhou com Emmanuel Nunes.
Sim. A primeira Litanie du feu et de la mer toquei-a em Itália. Ele não estava presente- mandei-lhe a crítica. A seguir quis tocar a segunda, quando toquei na Salle Gaveau. Nessa altura, até não queria contactá-lo, mais por timidez, do que por arrogância- quer dizer, talvez as duas coisas se toquem. Mas como estava bem acompanhada… Foi o meu Professor, o Ribitzki, que arranjou esse concerto e que promoveu o ensaio; ele é que achou que eu devia contactar o Emmanuel Nunes e foram eles (Ribitzki e pai do Jean-Louis[5] ) que o levaram ao concerto. Coloquei extractos desse concerto no youtube recentemente, como homenagem (um video caseiro, feito pelo pai do Jean-Louis[6] ). Portanto, contactei-o. Lembro-me dele me ter ouvido, em Lisboa, e depois até termos ido à ópera do Stockhausen. Como tinha tocado as duas Litanies, quis fazer o disco e fi-lo.
Mais tarde, quando fiz o DEA, que é sobre as Litanies, não lhe disse nada, porque achava que não tinha que o fazer. Tinha que fazer o meu trabalho, tentar percebê-lo …e encontrei a chave da obra! Ele deve ter ficado espantado, porque foi um trabalho colossal; mas depois insistiram imenso para eu lhe mandar um exemplar. Mais uma vez, continuava bem acompanhada, e mandei-lhe um exemplar. Mas fi-lo porque só ele podia perceber o que é que aquele trabalho tinha representado para mim. Depois ele teve um concerto monográfico, em Valência, e convidou-me. Eu fui tocar.
Voltando ao trabalho com o compositor…
É muito interessante e desenvolve imenso. Normalmente, um intérprete, ou um professor, num contexto mais académico, restringe-se muito àquilo que está escrito – e tem que ser ao que está escrito! Mas às vezes há uma certa liberdade em relação à partitura, há uma outra interpretação, não é?
Como é que descreve a experiência da preparação de uma estreia absoluta de uma obra? É muito diferente de trabalhar uma obra que já foi tocada antes.
Exacto. Primeiro é partir de algo de que não se tem referências. É partir do zero, o que, dum certo ponto de vista, é fantástico! Depois é ir percebendo o universo sonoro da obra, ir ligando as coisas à sua maneira. Agora, o momento da estreia é de uma grande responsabilidade, porque o compositor está ali na mão de quem está a tocar, está a apresentar a sua obra pela primeira vez. É uma grande responsabilidade. Eu lembro-me de ter grandes aflições em relação ao João Pedro Oliveira, por exemplo.
Porquê?
As Pirâmides de Cristal são colossalmente difíceis. Por acaso, a Câmara de Matosinhos adiou a data prevista para o concerto de estreia, por razões que me são alheias, e para mim foi benéfico, porque foram uns bons meses a trabalhar a obra. E com aquela primeira peça de piano e electroacústica, In tempore, eu estava quase a adoecer.
…Na preparação da obra?
É dificílima. Eu tinha feito algumas peças com electroacústica e sabia mais ou menos o tempo que demorava… A pessoa tem que pensar com três, quatro meses de antecedência, que é para não ter surpresas desagradáveis, digamos assim. Não se sabe o que é que ali está. Pode conhecer o compositor, saber que é uma peça muito difícil, sobretudo em termos técnicos… Às vezes é de um virtuosismo muito grande. Nas Pirâmides isso vê-se: aquilo vai para todos os lados, não é? Na In tempore essa dificuldade não se percebe, mas está na ligação da acústica com a electroacústica [sobre suporte]. Como disse, tinha feito algumas peças com electrónica, mas foi uma experiência muito reduzida. A peça estava construída de forma que piano e electroacústica fossem tocadas juntas, mas havia uma certa independência entre ambas, sendo no entanto tudo ligado, cruzado- muito mais do que na Mosaique. É uma ligação entre uma série de ecos e ressonâncias entre o piano e a electrónica, que repete- uma baralhada que dá um trabalho enorme! Além de que não é possível tocar no tempo em que ele a escreveu. Eu queixei-me um bocado, mas fiz! É sempre um desafio! Eu tenho que fazer.
Acabou por ser possível. Se a Madalena fez, foi possível.
Há passagens quase, quase impossíveis. Está no limite. E depois outros pianistas tocaram-na e ele fez uma outra versão …mais lenta.
Mas consigo não fez porque…
…Porque eu não quis. Era um desafio. Eu não aceito dizer ao João Pedro que não sou capaz de tocar naquele tempo- tenho que ser capaz! Segundo soube, ele fez uma segunda versão, muitíssimo mais lenta, reagindo aos protestos de alguns pianistas, em Paris. Era impossível. Eu penso que ele também deve ter ficado um bocadinho surpreendido com a velocidade da peça. Estou a dizer isto porque o intuí, pois nunca falámos sobre isso. Acho que as questões do tempo devem ser uma coisa muito complicada, porque a pessoa ouve de uma determinada maneira, acha que é aquele tempo metronómico e depois pode ficar surpreendida com o que escreveu. Neste caso, o João Pedro é capaz de ter tido uma má surpresa com o tempo que indicou. Mas eu acho que, naquela música, o que é importante é aquela diversidade de gestos e aquela rapidez. João Pedro a 33 rotações não dá, para mim.
Quando diz que não aceita dizer ao João Pedro Oliveira que não é capaz de tocar a In Tempore naquele tempo é porque é muito importante para si sentir que consegue tornar a ideia do compositor possível? Há aí algum altruísmo, ou existe apenas um tal orgulho que não admite haver limites intransponíveis?
Acho que será mais o orgulho. Gostaria de dizer que era por altruísmo, mas acho que é mais o orgulho ou o desafio, por acaso. Eu achei que era extremamente rápido, mas até fiz.
Mas não acha minimamente sedutora a ideia de se pôr ao serviço do projecto de outra pessoa?
nhm… O projecto é da outra pessoa mas também é seu. Tem que ser!
Claro, mas a ideia de ser o veículo…
Não. Ele também tem que ser meu porque, senão, não vou passá-lo. O problema é esse: tem que tornar a obra sua!, seja ela clássica, romântica, contemporânea… Só assim é que pode transmiti-la. E acho que isto devia ser um elogio para os compositores. Deve ser muito gratificante, para um compositor, saber que há um intérprete que está ali inteiro na sua obra. Acho que, para o narcisismo de um compositor, não deve haver nada melhor.
Isto a propósito das estreias.
É muito interessante trabalhar com o João Pedro, precisamente por causa dele pretender um resultado auditivo imediato. Ele tem logo soluções para isto e para aquilo[7] . O Emmanuel Nunes era mais conceptual e penso que o que ele gostava mais em mim era o lado espontâneo, que é uma coisa que a música dele tem e que ninguém identifica com Nunes. É extraordinariamente espontânea, com um rasgo…
Pode dar um exemplo dos problemas e soluções do João Pedro Oliveira, por favor?
Na Pirâmides de Cristal (que não tem electrónica), pedi-lhe para pôr uns acelerandos, uns diminuendos; queria mais tempo num determinado sítio e ele mudou a suspensão para outra maior. Depois eu fiz mais tempo e ele ficou zangadíssimo! “Porque aquilo não era música espectral!” Mas eu precisava ali de muito tempo! E nas Pirâmides havia umas questões de realização por sobreposição de mãos que eram impossíveis e ele mudou: “agora fazes assim, reduzes isto a um trilo”.
Isso representa também disponibilidade para mudar. Se calhar, há compositores que resistem mais do que outros, não?
Sim, mas têm que escrever qualquer coisa que seja possível. Neste caso havia uma sobreposição, era impossível. Ele resolveu o problema reduzindo aquela passagem a um trilo, em vez da sequência toda que inicialmente tinha escrito. Na edição da peça isso já aparece corrigido. Os intérpretes também podem fazer sugestões em relação ao tempo- mais rápido, acelerando, etc, e os compositores aceitam. Outras não aceitam. Cada um tem as suas singularidades. Mesmo Emmanuel Nunes aceita muita maleabilidade. Creio que já contei isto, de quando trabalhei com ele: na segunda Litanie, por exemplo, há uma sequência final de uma série de acordes, todos com 9 segundos. Eu disse-lhe “não posso fazer isto com 9 segundos em cada um. É muito tempo. Não consigo manter a obra musicalmente.” E ele respondeu “está bem! Podes fazer menos, mas fazes todos iguais.” Mais tarde, ainda guardei maior admiração perante essa modificação. Porque eu acho que ele não estava muito contente com o resultado das Litanies- foi a sensação que sempre tive. E ele ia adaptando. Depois, quando fiz o mestrado, vi que na segunda Litanie o número 9 era estrutural na obra- para os acordes, para o espaço, de tempo… Como é que, sendo assim uma coisa tão estruturante em termos de escrita, ele deixava mudar…? Mas não funcionava, não valia a pena cumprir. Porque cumprir não era difícil! Difícil era sustentar aquilo musicalmente. …Ele aceitou. Aqueles acordes são fundamentais porque são uma síntese de tudo. E o 9 era um número chave. Aceitou também mudanças de pedal. Coisas dessas talvez não seja muito importante. Outras disse que não. Eu dizia-lhe “tenho que ligar isto…” e ele respondia “não, não, não… é assim. Isto é silêncio. É corte radical.” Ele não era autoritário, mas havia aspectos que não eram “negociáveis”. No resto ele dizia “sim, sim, podes fazer”.
Preparação e interpretação
Quando prepara uma obra nova, qual é a sua preocupação máxima?
É perceber a obra, senti-la e dar-lhe uma forma. Interessa que a obra me diga alguma coisa. Pego nela e transformo-a como se fosse minha, não do compositor. Sendo minha, vou transmiti-la duma maneira particular.
Parece tratar-se de várias etapas. Como é que se processa?
Primeiro leio a obra.
Ao piano?
Claro! Para mim, o trabalho de análise é posterior e é fora do piano- não vou ao piano procurar nada. A leitura é feita ao piano, porque preciso de saber como é que a música soa. A partir daí, as escolhas vão aparecendo, a música vai-se-me impondo. A pessoa vai fazendo um caminho com a obra e dentro da obra, de maneira que pode ser um trabalho muito grande.
Sem o piano, a partitura não fala consigo?
Fala muito, quando eu já a conheço ao piano. Nunca antes, porque o meu contacto com a música é através do piano, não só em termos físicos, mas também auditivos, tudo! Depois de conhecer a peça vou fazer o caminho inverso, vou dedicar-me só à partitura, sem a ajuda do piano; rememorizo tudo. Às vezes analiso obras que já não toco há muito tempo. Aí trabalho só com a partitura, concentrando-me apenas no processo composicional.
Com o que já está no ouvido.
Sim, claro. Quando se interpreta, já há uma análise da obra.
Mas a interpretação vem depois de já ter tocado.
Não, interpreto quando toco!
Quando faz a primeira leitura?!
Não. A interpretação surge aos poucos. As coisas começam a impôr-se, começa-se a fazer escolhas e depois dá-se uma ligação a tudo. Aí está-se a fazer uma espécie de análise, está-se a perceber o que é mais importante. Quando se está a trabalhar uma obra para a interpretar, não interessa saber muito da análise da obra… Há coisas que têm que estar claras, mas há muitas outras que não interessa que estejam. Não interessa estar a conhecer a partitura em termos analíticos do início ao fim. Isso acho que é inibidor da imaginação.
Então, depois de já ter uma leitura bastante clara da obra, se fizer uma análise, o que é que essa análise vai fazer à sua interpretação?
Nada! É preciso ver que há vários tipos de análise. O tipo de análise que me interessa fazer é teórico, composicional; é perceber como é que a obra foi concebida antes de ser escrita, deduzir o esquema que o compositor utilizou para fazer a obra.
Sendo que muitos compositores não têm esquema prévio, ou que o alteram.
Sim, é evidente.
Portanto acaba por ir à procura de um esquema artificial, de que pode nem sequer ter nascido.
Mas nas Litanies sinto que é natural. Na peça do João Pedro há esquemas.
O esquema que deduz vem do que está feito e não daquilo que seria a intenção original.
Está bem, mas isso eu não consigo saber – não sou o Sherlock Holmes. Dos compositores com que trabalhei, o Filipe Pires tem esquemas, o Pinho Vargas penso que não tem. A obra do João Rafael era mais uma série, portanto era descobrir a série e tal… E é complexo também. Agora realmente não interessa muito saber se eles fizeram o esquema depois, se começou…
O que é engraçado é essa análise nunca ir influenciar a sua interpretação.
Não. A interpretação é que vai influenciar a análise. É o contrário. Porque eu parto para uma análise conhecendo muito bem a obra em termos de execução.
Mas de certa forma já fez alguma análise…
Intuitiva! Nada racional. É intuitivo. Nos clássicos é mais fácil porque está tudo mais assimilado- isto faz-se assim e aquilo faz-se assim e vai-se ver porquê. É bom no ensino, não é? Porque isto é um acorde de 7ª da dominante, ou pode estar lá escondido e aquilo é uma zona de transição, por modulação. Há muita coisa que se pode saber intuitivamente. Mas isso é o milagre da música, porque uma criança de 5 anos pode ser um intérprete maravilhoso, mas não sabe nada. Um ouvinte não precisa de ser um melómano. Ele sabe intuitivamente, sobretudo numa linguagem clássica. Não precisa de saber “isto é uma cadência perfeita, aquilo é…” Ninguém, à partida, precisa de saber nada para poder sentir a música e interpretar. Aliás, penso que apenas certos aspectos devem estar conscientes, não todos. E aquilo que preciso de perceber em termos analíticos é o processo inverso… Se fosse feita no início, iria cortar completamente a espontaneidade da interpretação, porque há também um lado espontâneo na primeira execução, não é? Quando digo que o que me interessa na análise é descobrir o esquema, quero dizer que me interessa perceber como é que esse esquema é aplicado na obra.
E às vezes não é fácil. É tentar seguir o pensamento do compositor no momento em que a escreveu. Isto é de uma ambição desmedida! E eu não sei se consigo, se não consigo, mas é isto que me motiva.
O que a fez despertar para a música portuguesa? Foi o acaso, a proposta de tocar uma peça ou outra em Matosinhos? Já tinha tocado Filipe Pires, Emmanuel Nunes e, no fundo, a música portuguesa acaba por ter um grande peso no seu percurso…
Eu acho que não. Por acaso, a Manuela Paraíso também está sempre a fazer essa referência…
É o que a discografia transparece.
Mas não a minha vida, o meu percurso todo.
Então, falemos primeiro do que não está registado.
A música portuguesa apareceu relativamente tarde no meu percurso. Quando comecei a fazer música do século XX não queria fazer música portuguesa, porque, daquilo que eu conhecia– que, com certeza, não seria o melhor- era ir muito por ouvido, uma falta de tecnicidade… Havia uma grande diferença entre compositores como Stockhausen, os clássicos e românticos …e a música portuguesa. Custa-me dizer isto, mas era muito fraquinha e não tinha desafio nenhum. Entrar por essa vertente logo no início era estar condenada à morte.
Como se deu, então, esse encontro com a interpretação de música portuguesa?
Talvez tivesse começado no convite de uma amiga para tocar, em Paris, num festival de mulheres e música[8] , um evento muito interessante e bem concebido. Pedi uma peça à Constança Capdeville, que escreveu Avec Picasso ce matin…, para piano e fita magnética, sobre um poema de Garcia Llorca, em que que eu tinha que tocar percussão e uma data de coisas. E juntei Clotilde Rosa [Variantes II].
Mas como é que foi tocar música portuguesa, se isso não a estimulava muito?
Foi pela oportunidade de tocar! E porque era uma coisa pontual. De qualquer maneira, há coisas que eu não quero mesmo fazer, mas ainda assim mantenho uma certa abertura. Depois, no Verão seguinte toquei num Encontro Luso-Espanhol, no Palácio Galveias, e juntei-lhes as Figurações II, do Filipe Pires, que é uma obra fantástica. Lembro-me que, nessa altura, encontrei o Emmanuel Nunes numa situação muito engraçada: estávamos ambos a ensaiar na mesma sala, com uma cortina que a dividia a meio (aquelas coisas organizadas pelo Peixinho). Ele estava com o João Rafael a fazer a Öeldorf. Creio que também estaria lá o Enrique Macias. Eu já conhecia o Emmanuel de nome e disse “agora vais ouvir-me”. E ele ouviu. Portanto, para além dessas mulheres[9] e da Figurações II, depois toquei as Litanies. E nos anos 90 apareceu um grupo de compositores, o António Pinho Vargas, o João Rafael, o João Pedro Oliveira, que escreveram aquelas obras que eu toquei.
…De que surge aquele disco com a capa de Ângelo de Sousa.
Exactamente! Surge esse conjunto de gravações; a do Pinho Vargas vinha da rádio; a do João Pedro e aquela que o Filipe Pires me dedicou, Estudos de sonoridades, vieram do disco de Matosinhos; e a do João Rafael gravei-a depois, porque não consegui fazê-la na rádio. E o que é que eu fiz mais de portugueses? Não fiz muito mais! Agora toquei a peça da Isabel[10] , porque ela talvez faça a electroacústica. Não me lembro de ter feito mais nenhuma.
De facto, a existência desses discos deve levar a que se tenha uma ideia errada.
Eu fiz muito mais… A música portuguesa ficou circunscrita ao disco do Emmanuel Nunes e àquele dos anos 90. E depois houve o doutoramento e outras coisas, mas o meu percurso é essencialmente fora da música portuguesa. Eu até dizia “este é o meu pequeno contributo para a música portuguesa”. Toquei também algumas coisas de Lopes-Graça- Duas Glosas e as Variações sobre um tema popular português, na UNESCO, em Paris, também nos anos 80 ou 90. O facto de ter tocado Emmanuel Nunes na Salle Gaveau fui eu que impus. Num sítio importante, uma pianista portuguesa… se tivesse só tocado música portuguesa não chegava à Salle Gaveau. Já é difícil com repertório abrangente, então só com música portuguesa, não dá! Mas toquei os outros compositores em sítios importantes- são bons compositores, também me interessa tocar. Agora, eu não sou nem quero ser a intérprete de música portuguesa; isso seria cair numa armadilha terrível, porque a música portuguesa não tem dimensão para alguém poder fazer uma carreira através disso. Nem nenhuma música! Nem a holandesa, nem a espanhola…
E a francesa terá?
Se considerarmos a música francesa de todos os séculos – os cravistas, Debussy, Ravel… Mas ninguém é o pianista da música francesa! Isso seria muito redutor.
A Madalena diz que a carreira acaba por ser uma coisa menor perante a relação que se tem com a música.
E é por se ter essa relação que se toca em público; tocar em público não pode ser o primeiro motivo.
E a carreira o que é? Pelo que até agora lhe ouvira, a carreira não surgia como um aspecto importante. Havia apenas a música, elemento primordial; a relação do intérprete com a música…
Sim, uma vivência pessoal, uma escolha, uma necessidade…
Apresenta-se de enorme importância o desafio que a música lhe coloca a si e não lhe interessa muito fazer música que não lhe apresente esse desafio.
Aliás, tenho-o recusado muitas vezes.
Então o que é este conceito de carreira que acaba de trazer à conversa, sendo que o mais importante é a relação com a música e o desafio que ela lhe traz?
Toda a gente diz e, para mim, é mesmo verdade: nunca tive interesse em construir uma carreira; interesso-me por fazer concertos. Agora, a música portuguesa não é um desafio, nem em quantidade nem em diversidade de épocas. Ouve-se falar do Carlos Seixas e tudo o mais, mas é tudo muito fraquinho… O António Pinho Vargas tem uma visão pessoal mas, como intérprete, penso que o facto da música ser tocada por “intérpretes de primeira” será o suficiente para que seja divulgada. Temos o caso de muitos intérpretes que vieram a Lisboa e que tocaram obras portuguesas propostas pela Fundação Calouste Gulbenkian; seria de esperar que, no final, esses mesmos intérpretes as levassem para fora e as tocassem nos grandes festivais, mas isso não acontece. Há também, com certeza, uma falta de política de internacionalização. Mas isso é uma coisa complicada porque é preciso haver muita qualidade.
Do repertório todo que já tocou, que percentagem ocupa aquele que é de tradição clássica/romântica?
Foi uma parte enorme da minha formação, como toda a gente, que continuou até muito tarde, nos anos 80.
Ultimamente só toca contemporânea ou século XX?
Não, ainda recentemente toquei Liszt, por exemplo.
E Mozart e Beethoven?
Mozart não é muito o meu género, apesar de adorar ouvi-lo. Beethoven, sim. Era, aliás, um compositor com que me identificava muito. Há obras e compositores que fazem parte da minha vida e que pertencem, também, a um dado momento. É como as relações humanas, não é? Depois desaparece e vêm outras coisas. Acho difícil estar a repetir durante uma vida toda, porque a pessoa mudou, não é? Noutro dia, o António Chagas Rosa perguntava-me se eu não gostava de Debussy. “Adoro! Foi o primeiro compositor! Eu tinha 9, 10 anos, estava ali nas núvens a trabalhar aquelas sonoridades todas. Adoro! Mas passou.” Acho que é um pouco isso. Pertence a um momento, a uma fase, e depois vem outra coisa.
Se pensássemos em escrever a sua biografia a partir do repertório que tocou, quais são os momentos-chave?
Debussy, cerca dos 9 anos, depois começa a fase de Beethoven, que culmina na op. 110…
Com que idade começa a fase de Beethoven?
10, 11, 12 anos… Não me lembro exactamente. Talvez tivesse tocado antes a Für Elise… Porque as sonatas de qualquer maneira são complicadas. Mas há a op. 79, em sol maior, que é a primeira… Depois muito, muito Liszt. É um compositor que adoro- pianisticamente, musicalmente, tudo. Dos românticos, o meu preferido é Liszt, um grande compositor. Também houve uma fase Schumann (mais de passagem, embora também goste muito): aos 19, 20 anos, umas Kreislerianas, estudos sinfónicos… E depois Liszt. A seguir vieram os contemporâneos. Acho que é isso. Resumindo: Debussy, Beethoven, Liszt e depois Schönberg: compositores-chave na mudança da linguagem.
E Bach?
Tive sempre alguma dificuldade com Bach. Quando tinha uns trinta anos, tinha um aluno muito novinho, de quem gostava muito, que me dizia: “a Madalena não gosta de Bach, eu também não”. Eu gosto muito de ouvir Bach! Mas tinha uma dificuldade tremenda com aquele compositor. No fundo, o que procuro talvez seja perceber qual é a dificuldade, perceber o contraponto… Talvez agora já esteja mais preparada.
O que está a dizer é tão bonito…
Não pode ser por outra razão, senão por falta de preparação. Bach também foi importantíssimo na linguagem. Aliás, é universal. Tive que fazer um percurso enorme para estar preparada… Mesmo a ensinar, digo sempre aos meus alunos que deixamos Prelúdio e Fuga para o fim, porque é tanto trabalho!… Eu sei que posso ensinar Fugas complexas, mas é taaanto trabalho! Não sei se os alunos estão com disponibilidade para o fazer. Portanto é melhor eu fazê-lo, não é? Porque é preciso ter disponibilidade.
Público e palco: antes, durante e depois
O que é para si o ouvinte ideal?
É aquele que não tem referências de nada, que não tem preconceitos, seja ele profissional ou não. É evidente que, para um profissional, é mais difícil estar nesse estado de disponibilidade total para ouvir o que é que aquela pessoa tem a dizer com aquela obra, sobretudo nos clássicos e românticos. Não me interessa absolutamente nada que a pessoa faça aquilo que eu quero, ou aquilo que eu gosto, o que me interessa é que ela me diga qualquer coisa, senão, ouvir não tem interesse. A audição é um exercício de disponibilidade. Para um músico é muito difícil, mas tem que se fazer esse esforço.
Quando a Madalena toca, fá-lo sozinha ou com o público?
Sozinha…
…absolutamente?
Com a obra. Provavelmente também por isso é que gosto de tocar de cor.
E a presença do público não a perturba?
Antes há uma preocupação grande, senão medo- depende dos dias. É a responsabilidade de tocar diante dos outros e de apresentar as coisas o melhor possível. Cheguei à conclusão de que essa angústia que está ligada ao concerto é só um medo perante si mesmo. Sei que é medo de falhar diante dos outros, mas é sobretudo perante si mesma, porque os outros estão ali para ouvir, são inofensivos. Isso dá uma grande calma. Só tem medo de si. Quando se está diante duma partitura, o que interessa é o confronto directo com ela e consigo própria.
Quando está a fazer um recital, se toca para si, o que está a fazer é simplesmente um exercício de…
…de narcisismo.
Não poria as coisas nesses termos. Está a permitir que os outros assistam a essa relação entre si e a música, não é?
É isso que vai passar.
Se a Madalena deixa que o público assista está, de certa forma, a ser generosa.
A pessoa não pode tocar para um público. Quem vive para um público, como dizem Kundera e Glenn Gould, vive na mentira. Tocar para o público é uma coisa artificial. A pessoa toca pela necessidade, pela força que a liga àquele texto. É só isso. Isso é que vai passar para o público. O que é especial é que essa ligação transmita uma mensagem para os outros.
Mas se a Madalena não tivesse um recital, se não soubesse que ia estar lá o público, ia preparar as peças com a mesma seriedade, só para si?
É evidente! É responsabilidade perante mim, não é perante os outros. É só isso. O medo é perante mim, não é por causa dos outros. É evidente, pode dizer-me “mas quando toca sozinha”… Não, pode ter tanto medo de tocar diante de si sozinha como diante do público.
Acredito que possa ter o mesmo medo… Mas deve haver algum propósito em tocar perante os outros. Ou não? Se se partilha, por alguma razão há-de ser. Não é pelo pouco dinheiro que se ganha num recital, com certeza
Claro. Não sei… Realmente, pode haver uma necessidade de reconhecimento naquilo que se faz. Esse teste tem que o passar. Não é preciso que chegue a toda a gente; basta haver uma pessoa e sincera: com aquela pessoa comunicou. Mas o maior reconhecimento que pode ter é o desafio que aquela obra representa para si. O reconhecimento está aí. A pessoa até podia viver sem tocar em público, porque o reconhecimento só está no desafio, no que aquela obra a fez avançar, evoluir! Não há mais nenhum reconhecimento. Pode é haver um teste para saber até que ponto os outros ouvem essa sua ligação com a música, tão fechada, tão íntima e tão directa. Passa? Não passa? Tocar em público acaba por ser sempre um desafio e a pessoa também gosta de se pôr à prova. Eu gosto. É das coisas mais difíceis que há! A pessoa vai-se habituando, mas é uma coisa colossal. É para fazer no momento e acabou. A relação com o tempo é uma algo dramático. Um amigo meu francês dizia uma expressão muito engraçada- eu estava a explicar-lhe o que é que sentia e ele disse: “é a vida e a morte juntas num momento”. Há uma aprendizagem que se faz de si própria…
No momento? Ou na preparação do momento?
Na preparação e no momento. No momento há uma aprendizagem e essa experiência é importante para conhecer a obra, para se conhecer a si, para muitas coisas. É sobretudo um conhecimento de si próprio. Quando não funciona porque a pessoa não está muito bem, é doloroso, porque houve muito investimento e, por causa dum momento menos ameno, a pessoa falha. Isso é difícil. A pessoa sabe que falhou. O problema não é os outros testemunharem. É a pópria pessoa saber que falhou.
Porque os outros podem nem notar.
Podem não notar ou desvalorizar… Mas o que importa é a pessoa saber que naquele momento falhou. Há também uma parte de desafio.
Parece haver algo contraditório. Por um lado, existe a relação entre si e a música, que é o mais importante, o que está acima de tudo.
Tudo parte daí.
Só que o facto de estar perante os outros não é um acaso, isto é, os outros existem e a Madalena vai pôr-se perante eles.
Claro. Existem e vou submeter-me à apreciação deles. E há alguma surpresa de vez em quando. Por exemplo, naquela série do Beethoven[11] , sobretudo na última, eu senti muito prazer em tocar para muito público. Portanto, aí há uma contradição absoluta.
No dia de um concerto, trabalha sempre algumas coisas para conhecer o piano em que vai tocar, não?
Toco todo o programa, do início ao fim. Acho que toda a gente faz isso.
Como vive o momento anterior à entrada em palco?
É um momento angustiante em que se vive o medo de falhar, de não conseguir vencer bem o desafio que é tocar. Tocar em público é das coisas mais difíceis. Gosto muito de ver os Jogos Olímpicos por causa dessa força do momento, da ligação com o momento. É extremamente forte ver aqueles desportistas a fazer os 100 metros ou mesmo as danças artísticas. Há um enorme investimento e o culminar é aquele momento. É necessária uma concentração fortíssima e qualquer hesitação que ocorra é fatal! É colossal. Pode-se dizer que as pessoas estão preparadas, estão treinadas para isso; mas é sempre dificílimo! Lembro-me do Claude Helffer, habituado que estava à sua carreira internacional, estar aqui no Porto para tocar no Ateneu, há uns anos largos- eu tinha uns vinte e oito anos. Naquele dia ele estava especialmente nervoso e dizia-me: “Sabes? É cada vez mais difícil”. Eu ficava a olhar para ele… mas depois vi: é cada vez mais difícil. Mesmo tendo-se mais experiência, conhecendo-se melhor aquela situação, é cada vez mais difícil. Vai-se perdendo qualidades, como a espontaneidade e a ingenuidade, e a responsabilidade é maior. Para uma criança, tocar em público é uma festa. Depois, começa a tomar consciência do que aquilo é e torna-se mais complicado. Felizmente, nunca toma plena consciência, senão não tocava. E é cada vez mais difícil exactamente porque está cada vez mais consciente do que isso é. A única coisa que melhora é a concentração no objectivo, que é o de tocar. Uma das coisas que faço em casa, que é uma excelente preparação, é reconstituir emocionalmente toda a situação do concerto. Aí a angústia é tanta ou mais do que ao tocar em concerto, porque o público não existe. No fundo, é enfrentar-se. Quando se está em público, tem-se testemunhos, mas está-se sozinho. Ninguém ajuda. É um pouco aquela ideia da vida e da morte. Na morte está-se sozinho. É um momento de verdade, completa. Não há máscaras. É um pouco a ausência do tempo físico como nós o conhecemos. Portanto, se conseguir reconstituir essa situação emocional sozinha, é uma excelente preparação: pelo menos, a tocar em público está acompanhada. Tem a mesma situação, mas tem realmente a presença de um público.
Talvez seja mesmo um assunto complicado, porque aquilo que se sente não será o mesmo em todos os momentos. Acaba por ser contraditório porque num momento sente mais paz e noutro acaba por sentir mais angústia.
Exacto. Além disso, cada pessoa vive esse momento de maneiras diversas. O que faz sentido perguntar é, se a pessoa sente tanta angústia, o que é que a leva a querer repetir esse momento.
E o que é?
É um desafio. Para mim é um desafio, saber se consigo ultrapassar, é um teste! Não consigo saber porquê. Quando entrevistei a Martha Argerich, ela disse “eu nunca quis fazer carreira nem fiz nada para isso!” A coisa aconteceu. E eu perguntei-lhe: “porque é que não acabou? É que está a tocar cada vez mais!” E ela respondeu-me: “pois, é um problema, eu não sei responder”…[12] É vital, não é? Imagino que para ela seja uma coisa vital. Para mim também será. Agora, o que cada um tem em jogo no momento em que está a tocar, isso é diferente. Quase toda a gente tem muitas angústias. É isso é que pode fazer desse momento uma coisa especial.
E quando acaba esse momento?
É o vazio.
O que é que se faz depois desse vazio? Fica-se à espera que haja outro momento?
Sim. Há outras coisas que vão aparecendo mas, no momento, há qualquer coisa que acabou.
Quando fala do facto de reconstituir a situação do concerto em casa, numa preparação “emocional” para o mesmo, isso foi algo que descobriu sozinha, que ocasionalmente alguém terá partilhado consigo, ou na formação de um intérprete há mesmo uma parte séria dedicada à forma de encarar a situação de concerto?
Eu descobri sozinha. Preparar para a situação de concerto é preparar a obra. Depois, essa situação emocional pode ser preparada de muitas maneiras. Creio que, às vezes, com alguns alunos que têm um lado emocional mais instável- porque é disso que se trata- poderei fazer um trabalho que impeça que a emoção perturbe. Só com o trabalho é que isso se resolve. Creio que a ideia de me preparar tentando reproduzir em casa a cena do concerto em termos emocionais é pessoal. Não consigo dizê-lo a nenhum aluno, pois acho que eles não vão perceber o que isso é. Creio que tem que ser a própria pessoa a descobri-lo. Por acaso, já conversei sobre isto posteriormente com um amigo compositor, o Olivier Milhaud (sobrinho-neto do Darius Milhaud). Mas acho que estas coisas são difíceis de transmitir. A outra pessoa deve pensar que eu sou maluca.
Mas acha que os jovens intérpretes saem preparados para enfrentar o palco? Ou só mesmo enfrentando o palco várias vezes é que se podem preparar para isso?
Acho que só o palco pode prepará-los, porque cada um deve testar como funciona emocionalmente. Há pessoas que não têm problemas nenhuns, para quem tudo funciona sempre muitíssimo bem, o que tanto pode acontecer por dotes extraordinários, como por uma total falta de consciência. Quem está no meio é que é um desgraçado.
Se tivesse uma agenda de seis recitais por mês, o vazio seria com certeza bastante diferente.
Havendo uma actividade mais continuada, com um período menor entre recitais, o vazio sente-se menos. Houve alturas em que toquei bastante, mas é uma grande angústia, um stress horrível. O que não me parece positivo é que a pessoa precise da confirmação de que os outros gostam para lhe dar confiança; porque a confiança nunca pode vir daí, tem é que vir da tal relação íntima que se tem com a música. E há pessoas que, quanto mais tocam, mais confiança têm, o que é um pouco artificial.
Estava a dizer que ter mais recitais corresponde a um stress muito maior.
Não o será localizado, para cada um dos concertos, mas sim no conjunto. Preparar outro programa, fazer a viagem, adaptar-se ao piano …é preciso ter um feitio muito especial, porque é um esgotamento emocional. Eu gosto de concertos separados, para poder recuperar. Depois dos trinta anos, nas vésperas de tocar emagrecia. Se tivesse concertos todos os dias, era sempre uma elegância. E comia pacotes e pacotes de bolachas! Mas a emoção era tal que ficava encolhida na zona do abdómen e eram precisos oito dias para que voltasse ao normal (não porque comesse mais!). Não chegava a perder peso, só que diminuía. Quando conseguia finalmente descontrair-me, voltava ao normal. As pessoas achavam impossível, mas é possível! E é algo violento.
A ideia de repetir programas não lhe agrada?
Não muito.
Faz um programa e ele fica consumado no momento em que o toca?
Ao contrário da maioria das pessoas, sim, porque, com a repetição, tocar torna-se algo cada vez mais mecânico e menos interessante. A vantagem de se repetir é haver menos sofrimento, mas há também quase uma banalização. Claro que, para aqueles grandes músicos que fazem grandes carreiras, isso não acontece. Têm concertos todos os dias, está sempre tudo muito presente. Não podem ser sempre fantásticos, porque não basta carregar num botão para se fazer música. Isso é que seria interessante perceber como se passa, em termos emocionais. A pessoa não sabe dizer; é uma coisa que é natural, faz parte da vida.
Já estivemos no “antes”, no “depois”…
O “durante” é algo que passa tão rápido que é impossível descrever. Não pode haver um pensamento analítico ao mesmo tempo que se está a fazer qualquer coisa. Só depois é que a pessoa pode detectar: “aqui desconcentrei-me”, “ali houve um medo”… Depois isso é importante. A tensão e a energia que se acumulam ajudam à concentração, tal como o trabalho, porque, no fundo, está-se completamente agarrado àquilo que se faz. …Mas isto é muito pessoal. Um pianista que tem n concertos anuais deve funcionar doutra maneira.
Discografia/Projectos
Gravou três discos a solo: o de Schönberg, o de Emmanuel Nunes e o dos portugueses dos anos 90; mas tem também participações noutros discos.
…De Denisov e de Francis Bayer, com as Percussões de Estrasburgo (pela Pierre Verany), e algumas outra gravações soltas.
Porque é que gravou estas obras?
O Schönberg gravei-o por ser um compositor que representa uma parte importante no meu percurso pessoal: foi um dos compositores que mais toquei quando nem havia ninguém a tocar essas obras. O António Pinho Vargas fala sobre isto no texto do disco.[13] Estávamos no pós-25 de Abril, um período revolucionário em que fazer música moderna, ou mais avançada, de vanguarda, era uma coisa fenomenal… Mais tarde, no ano Schönberg, fui convidada pela Porto 2001 para tocar a integral para piano e, nessa altura, tive uma tendinite que me impediu de o fazer. Como não aceito não fazer os projectos que imaginei, havia uma necessidade imperiosa de o concretizar de alguma maneira. Provavelmente nunca tocarei o Schönberg todo em público, porque é muito difícil: a extensão da mão é enorme e facilmente se faz uma tendinite. É um trabalho colossal! São três quartos de hora de música tecnicamente dificílima e de uma colossal densidade musical. Fazer um disco aos poucos pareceu-me a melhor forma de concretizar o projecto. Alban Berg, Webern e Schönberg são compositores de que gosto muito. É das épocas da História da Música que mais aprecio.
O que lhe atrai mais nesses compositores?
É a densidade da expressão. Para além da diversidade de situações, é uma música de uma expressão fortíssima. Sobretudo Schönberg, muito descontínuo já (depois ainda será mais). Atrai-me aquele mundo muito complexo, de difícil acesso… É sempre aquela necessidade de compreender qualquer coisa, de me aproximar daquilo, nem que seja só um bocadinho mais. É sempre a questão do desafio, do que aquilo nos traz como evolução pessoal, inclusivamente de desenvolvimento mental, de compreensão, passando do aspecto puramente auditivo, chegar a uma outra concepção…
Acha que se tivesse gravado este programa nos anos 80, agora seria capaz de repetir a gravação?
Podia fazê-lo. A forma como tocava nos anos 80 era diferente, imagino. Tenho até um comentário escrito lindíssimo, sobre a op. 11, dum ouvinte francês, que escreveu o que o momento lhe sugeriu e me deu o papel, sem mais nada. Dizia que eu tinha um souffle, uma respiração… É das coisas mais bonitas que me escreveram e impressionou-me. Guardei aquele papel e pensei “bom, devo ter tocado mesmo bem.”
Gravou os compositores portugueses porque esse seria o seu contributo para a música portuguesa.
Pequeno contributo, sim. Juntamente com o doutoramento e o mestrado, creio que foi o meu pequeno contributo para a música portuguesa. Tive a sorte de encontrar compositores com obras muito bem escritas para piano, ao contrário do que penso que antes se passava. Foi mesmo uma sorte, pois é difícil que haja outros compositores a escrever tão bem para piano.
…Em Portugal!
Em Portugal, claro. Foi um salto incrível e eu tive a sorte de partilhar esse momento.
Mas acha que esse momento foi um acaso ou estará antes no âmbito de uma linha crescente?
Eu não conheço. Há o Carlos Caires, que é um compositor fantástico… Mas talvez também me tenha afastado do que se compõe actualmente para piano, portanto não tenho conhecimento. O que posso dizer é que coincidi com um momento fantástico da composição, em que estava a acontecer uma expansão enorme com estes compositores- o Pinho Vargas, o João Pedro Oliveira, o João Rafael (o Filipe Pires e o Emmanuel Nunes são doutra geração, mas também foram muito importantes). É um momento particular de grande mudança na composição em Portugal. E é preciso ver que, quando eu fiz o curso superior no Conservatório de Música do Porto, os compositores não existiam. Eles lá ficavam não sei quantos dias a fazer um exame fechados, mas… Havia o Lopes Graça.
Se tocar em público acarreta aquela transformação de tão grande tensão (localizada) na sua vida, acha que investir mais numa “carreira” discográfica seria uma boa solução?
Cheguei a pensar nisso, quando comecei a fazer algumas gravações, mas os discos não se vendem. Atinge-se “zero público”, sobretudo num disco de Schönberg e, mais ainda, com editoras que não divulgam. O mercado já é pequeno, mas então fazer outra edição do Schönberg… Há uma dificuldade enorme, porque agora impera o youtube. Os hábitos de audição mudaram completamente: ouve-se o que se quer, como se quer, quanto se quer… Acho que as pessoas vão ao concerto, mas este hábito de ter um disco, de o pôr no leitor e se sentar para o ouvir, acabou. Pode voltar mas, neste momento, ninguém o faz.
Mas acaba por ser um registo e funciona também como carta de apresentação.
Sim, é um cartão de visita, um registo para se apresentar. Mas como é que isso se paga?
Quem entra no mercado dos agentes e tem grandes carreiras, tem as duas coisas em simultâneo.
…Tem as grandes editoras, tem tudo. E tem visionamentos no youtube, que funciona em qualquer lado. Está tudo mudado.
Mas se a Madalena tivesse a oportunidade de ter os seus discos comercializados, sem que isso representasse custos para si, quais seriam os projectos discográficos que gostaria de concretizar?
Lançaria novamente este Schönberg, por exemplo, pois acho que o disco passou praticamente despercebido. Nunca vi que a rádio portuguesa tivesse transmitido seja o que for, nem às cinco horas da manhã. Agora já estou um pouco no registo do António Pinho Vargas: nem às cinco horas da manhã! Acho que não há nenhum pianista português que toque esta integral, o que já traduz alguma da importância do disco. Isto é dito no texto do António Pinho Vargas: esta obra é tocada por dois grandes pianistas do repertório clássico-romântico, que são o Pollini e o Glenn Gould. Não se trata daquelas obras que ficaram nos especialistas. Passou para os músicos.
Bom mas, se fizesse discos, quais seriam…
…os compositores. Pois, acho que reeditava já o Schönberg (com a mesma gravação) e talvez retome outra vez um programa mais clássico. E uma coisa que eu gostaria de fazer seria A Arte da Fuga. Seria uma surpresa, mas eu gosto de surpreender. É não é uma surpresa assim tão grande, porque tem a ver com o Schönberg. É contraponto.
O Schönberg é que tem a ver com a Arte da Fuga.
Claro, mas no meu percurso está ao contrário. Acho que gostaria de fazer isso. É uma mudança radical.
E esse será o seu próximo projecto…
Provavelmente.
Sem ser um projecto discográfico, o que gostaria de fazer?
Há outro projecto que quero realizar, mas estou sempre indecisa entre fazer gravações comerciais ou simplesmente disponibilizá-las no youtube: quero concluir um percurso de música electroacústica.
Mas internacional…
Sim, provavelmente incluindo dois portugueses: a Isabel e o João Pedro. Vou gravar já o Jonathan Harvey. Se ponho no youtube ou noutro sítio, depois vê-se. Quero gravar também a peça de Davidovsky- Sincronismos nº6, que é interessante e engraçada – é uma outra época. …E uma obra do Georges Aperghis, difícil e bastante complexa, que foi feita no IRCAM- ele já me mandou a parte electrónica e a partitura.
Aperghis é um compositor que gosta de trabalhar?
Para trabalhar tenho que gostar, não é? Falaram-me da peça, ouvi-a e gostei. É uma peça com grande qualidade e a electroacústica é feita no IRCAM, o que já oferece alguma garantia. Deram-me o contacto do compositor e já tenho todo o material. Como é difícil, tenho que me atirar ao trabalho. O Jonathan Harvey, como sabe, já tive intenção de o tocar há muito tempo. Se posso, concretizo os planos que tenho na ideia. Portanto, tenho que acabar a electroacústica, para me dedicar ao Bach, porque eu trabalho com “exclusividade”. É também por um prazer de… uma certa provocação.
Bach, uma provocação?
…Quer dizer, não quero ficar ligada a nada. Só à música, não é? É que esse é um projecto importante!
É um desafio?
É!
…Porque faz parte do percurso de um pianista tocar Bach, ou não é por aí?
Não, não é por aí. É um desafio pessoal, porque gosto daquela obra, porque acho que é muito pouco tocada, para não me meter em concorrências com este ou com aquele, por melhor que sejam. Quer dizer, já com o Schönberg posso pôr-me em concorrência, mas… É melhor, é pior…
Não gosta de concorrência? Não gosta da ideia de ser comparada…
Porque as coisas não se comparam! Percebe? Por exemplo, acho horrível a ideia do Concurso Internacional, porque este é melhor do que aquele… Eu sei o que é que gosto. Gosto mais deste do que daquele. Mas esse tipo de mecanismo, para mim, é o contrário de música. E o que é que isso quer dizer? Uma coisa que soa melhor a uma pessoa do que a outra? Não sei… Acho que a pessoa tem que ser observada de uma maneira inteira, não por ser melhor ou pior do que o outro. Não há melhor gravação. Isso não me interessa, não me diz respeito.
O que é não lhe diz respeito?
Não me interessa se me comparam. Isso só faz parte da responsabilidade da pessoa que estabelece a comparação, tratando-se de crítica ou de elogio- é exactamente a mesma coisa. Acho que cada pessoa deve ser observada em absoluto, não é?
Inevitavelmente, quando reparamos em alguma coisa, temos um conjunto de referências.
Por exemplo, numa crítica da ResMusica[14] sobre o meu disco de Schönberg, diz-se “muito menos dogmático do que Glenn Gould”. Mas o Glenn Gould é dogmático? Já é dogmático?! Isto é um elogio! Fez-me grandes elogios. Mas não sei o que é que isso quer dizer. O que é que isso vale como argumento?
Pois, vale o que vale. Mas quando as pessoas têm que dizer alguma coisa, é muito difícil dizerem seja o que for que não perturbe e que tenha algum conteúdo inquestionável.
Agarram-se à comparação para não falar daquilo.
É muito difícil, não é?!
Dificílimo.¬
[Fim da parte I/II]
MA: Non ho un grande bisogno di suonare in pubblico. No. Io ascolto molta musica, non soltanto dai CD ma anche della radio, perché amo avere sorprese. Mi piace molto ascoltare musica e in fondo non ho veramente bisogno di esibirmi in pubblico.
MS: E perché allora constatiamo che continua a fare una carriera folgorante?
MA: Non so per quale ragione. È una specie di palla di neve che scende da sola a valanga. Non so cosa capita. Ultimamente mi sono spesso posta la domanda.”
In Madalena Soveral: “Saggeza e disincanto” – Martha Argerich | incontri. scoperte. Progetti. Pagine d’Arte. Lugano. 2011 ^